SINAIS DE REVERÊNCIA NA LITURGIA OCIDENTAL

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SINAIS DE REVERÊNCIA NA LITURGIA OCIDENTAL

(aspectos práticos)

Alexandre Henrique Gruszynski*

O título até pode parecer redundante, pois reverência é uma expressão que eventualmente já designa um sinal. É um sinal com que se mostra reconhecer o valor ou o significado que uma pessoa ou um objeto merecem.

A Liturgia, em certa perspectiva é, toda ela, uma reverência, mas é possível, na sua realização, destacar sinais físicos, humanos, que de modo peculiar revelam (ou ao menos se destinam a revelar) esse respeito que o agente litúrgico tem para com tal pessoa, mesmo divina, ou tal coisa.

Alguns sinais de reverência são, se assim podemos dizer, estáticos, no sentido de que se apresentam com permanência, ou ao menos com estabilidade: manter uma vela acesa diante de um ícone; ter o texto do Evangelho impresso com primor e encadernado com requinte artístico; manter limpo o espaço litúrgico (também no sentido de não conter objetos estranhos ou que o sobrecarreguem); e assim por diante.

Os sinais de que se pretende falar neste escrito, porém, são os sinais corporais que os fiéis, ao participarem de uma celebração, põem em prática para manifestar sua relação de respeito.

Há quem diga que entre os sinais corporais básicos estão as atitudes[1].

Desde logo: ficar de [2] durante os ritos iniciais da celebração, ao canto da Aclamação ao Evangelho, ao escutar (ou, nas Vésperas e Laudes, proferir) um texto evangélico[3], durante as diversas Orações, na Profissão de Fé, ao comungar.

Ficar sentado para escutar as outras leituras bíblicas e a homilia.

Manter silêncio quando não for a hora de cantar ou falar, ou for a hora de se concentrar[4].

As atitudes são, assim, até mais importantes do que os gestos ou modos designados pela palavra sinal.

Entre os fiéis ocidentais, os sinais são basicamente a genuflexão e a inclinação.

A genuflexão[5], que se faz (com o tronco ereto) dobrando o joelho direito até o chão, tem o significado de adoração, e por isso mesmo é reservada ao Sacramento da Eucaristia, quer exposto quer recolhido no Sacrário. É feita, ademais, à santa Cruz, mas apenas desde a sua solene adoração no contexto da Celebração Vespertina da sexta-feira da Paixão do Senhor até o início da Vigília Pascal.

A inclinação[6] compreende duas modalidades (ou graus):

1) primeira é a simples inclinação da cabeça, que se faz ao nome da Trindade, de Jesus, da Santa Virgem Maria e ainda do Santo em cuja memória está sendo celebrada a Eucaristia ou a Liturgia das Horas.

2) a segunda é a inclinação do corpo (ou inclinação profunda), que se faz ao altar (em que não está presente o Sacramento da Eucaristia)[7]; ao Bispo; e antes e depois da incensação (como se verá adiante). Eventualmente algum livro litúrgico prevê inclinação profunda em determinada celebração.

Note-se que quem carrega, na procissão, um objeto que será utilizado na celebração (como a Cruz Processional, o Evangeliário, os castiçais) não faz nem genuflexão nem inclinação profunda[8]: faz inclinação simples, com exceção de quem porta o Evangeliário, que permanece ereto[9].

Todos os que entram na igreja devem expressar sua reverência ao Santíssimo Sacramento nela conservado, e isso ou dirigindo-se à Capela da Reserva Eucarística, ou, pelo menos, mediante a genuflexão[10].

Todos os que transitem diante do Santíssimo Sacramento, quer exposto quer recolhido a um Sacrário, devem fazer genuflexão[11], a não ser que estejam integrando uma Procissão (por exemplo, a de entrada ou de saída da celebração, ou a das oferendas, ou a da Comunhão).

O altar deve ser saudado mediante uma inclinação profunda tanto pelos que chegam ao presbitério como pelos que dele vão embora, ou ainda, pelos que passam diante dele[12]. Entretanto, se nesse altar estiver presente o Santíssimo Sacramento, quer guardado em um Sacrário ali localizado, quer exposto para adoração, quer ainda, durante a celebração eucarística, entre a consagração e o consumo ou recolhimento das eventuais sobras após distribuída a Comunhão, a reverência deverá ser a genuflexão.

Mas quem está portando o Corpo (e/ou o Sangue) do Senhor evidentemente não faz nenhuma reverência.

Ademais, junto ao altar o Sacerdote celebrante faz genuflexão após a apresentação do pão consagrado e do vinho consagrado, e mais uma vez antes da comunhão[13].

O Diácono que pede a bênção antes de proclamar o Evangelho faz inclinação profunda ao Celebrante[14]; este igualmente faz inclinação profunda ao altar se ele mesmo tiver de proclamar o Evangelho[15].

Numa concelebração presidida pelo Bispo, porém, se um dos presbíteros concelebrantes, por falta de diácono, tiver de proclamar o Evangelho, ele deve, em inclinação profunda, pedir a bênção do Bispo[16]; se não for o Bispo a presidir, a inclinação é ao altar[17] (com as palavras correspondentes).

Cabe especial atenção ao seguinte:

Ao chegarem, para iniciar a celebração, ao Presbitério onde se encontra Sacrário com o Santíssimo Sacramento, os participantes da Procissão de Entrada devem fazer genuflexão; semelhantemente ao deixarem tal Presbitério ao término da celebração.

A partir daí, entretanto, o centro da liturgia passa a ser o altar da celebração, e não o sacrário que não está sobre ele, de modo que durante a celebração só se faz a reverência (cabível) ao altar da celebração; não ao Sacrário alhures no Presbitério, muito menos se fora dele[18].

Por outro lado, Acólitos e Leitores, após chegarem ao Presbitério na procissão de entrada, devem ocupar lugares aí, no mesmo Presbitério. O que, naturalmente, há de se aplicar aos fiéis que, na falta de tais ministros legalmente instituídos, supram (enquanto lhes é permitido) as suas funções. Assim, também estes têm seu lugar no Presbitério. Se, em razão da disposição da igreja, ficam no limiar do Presbitério, numa área imediatamente ao lado, parece que se os deveria, pois, considerar já presentes no Presbitério e, portanto, não caberia fazerem nova reverência ao altar quando se achegam para fazer uma leitura ou para apanhar objetos na credência.

Já se vêm do meio dos demais fiéis, passando pelo altar, então sim, farão a este a reverência devida.

Em todo caso, não fazem reverência nem ao celebrante, nem ao ambão, nem ao livro, e isso nem antes nem depois de proferirem uma leitura (ou salmo).

Na Missa, o Sacerdote (além daquela ao pedir a bênção para proclamar o Evangelho) faz inclinação profunda às palavras E se encarnou…, na Profissão de fé[19], e ao altar, ao término da preparação dos dons (antes de lavar as mãos, ao dizer De coração contrito e humilde…)[20]. Também, no Cânon Romano, às palavras Nós vos suplicamos

O beijo no altar é também uma reverência, a ser praticada pelo celebrante (e pelos concelebrantes, se houver) e pelos diáconos ao chegarem ao presbitério, após a inclinação ou genuflexão[21]. O altar também é beijado na saída, logo após o Ide em paz…, mas não pelos concelebrantes, que apenas lhe fazem inclinação[22].

O Evangeliário é objeto de peculiares reverências:

1) na procissão de entrada é carregado, erguido, pelo Diácono, à frente dos demais clérigos[23]; na falta de Diácono pode ser levado por um dos concelebrantes, ou ainda por um dos Leitores[24];

2) é colocado, na chegada, fechado, sobre o altar;

3) durante a Aclamação ao Evangelho é retirado do altar por quem o proclamará e conduzido, elevado (sempre que possível com o acompanhamento de um par de velas e precedido pelo turíbulo) até o ambão[25];

4) no ambão, é, se possível, incensado por quem o proclamará[26];

5) ao término da proclamação, é beijado por quem o proclamou (pode sê-lo pelo Bispo Diocesano que estiver celebrando solenemente) e recolhido à credência ou a outro local nobre (não ao altar)[27].

Ao Bispo Diocesano, quando celebra, faz inclinação profunda o ministro que, em razão do serviço, a ele chega ou dele se afasta[28].

Incenso  Incensar é, também, uma expressão de reverência. Uma série de regras detalhadas[29] está estabelecida a respeito do seu uso nas celebrações[30].

As mais genéricas são estas:

1) antes e depois da incensação quem a realiza faz inclinação profunda à pessoa ou ao objeto incensado, exceto ao altar e às ofertas sobre ele colocadas e apresentadas[31];

2) o uso do incenso é obrigatório quando se faz exposição do Santíssimo Sacramento em ostensório[32];

3) o Santíssimo Sacramento é incensado de joelhos[33].

NOTAS:

* com a colaboração de Yandara Terezinha Araujo Conte.

[1] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 42.

[2] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 43.

[3] Cerimonial dos Bispos, n° 74.

[4] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 32; n. 45; n. 54; n. 56; n. 66; n. 88; n. 128; n. 130; n. 136; n. 164.

[5] Cerimonial dos Bispos, n° 69.

[6] Cerimonial dos Bispos, n° 68.

[7] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 49.

[8] Cerimonial dos Bispos, n° 70.

[9] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 274.

[10] Cerimonial dos Bispos, n° 71.

[11] Cerimonial dos Bispos, n° 71.

[12] Cerimonial dos Bispos, n° 72; Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 122; n. 185.

[13] Missal Romano, Rito da Missa com o Povo, n. 91, 92, 104, 105, 111, 112, 120, 121, etc.; 133. Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 157.

[14] Missal Romano, Rito da Missa com o Povo, n. 11; Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 175.

[15] Missal Romano, Rito da Missa com o Povo, n. 11.

[16] Cerimonial dos Bispos, n. 74, in fine; n° 173.

[17] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 132.

[18] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 274.

[19] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 137. Ajoelha no Natal do Senhor e na Solenidade da Anunciação do Senhor.

[20] Missal Romano, Rito da Missa com o Povo, n. 19; n. 22; n. 96; Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 143.

[21] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 49; n. 123; n. 173

[22] Cerimonial dos Bispos, n° 73; Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 57, -d-; n. 169; n. 185; n. 211; n. 251.

[23] Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 172.

[24] Cerimonial dos Bispos, n° 74; Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 120, -d-; n. 194,

[25] Cerimonial dos Bispos, n° 74.

[26] Cerimonial dos Bispos, n° 74.

[27] Cerimonial dos Bispos, n° 141; Instrução Geral do Missal Romano (2000-2002), n. 175.

[28] Cerimonial dos Bispos, n° 76.

[29] Cerimonial dos Bispos, n° 84/98.

[30] Sobre as ações que cabem ao Diácono e ao Turiferário podem ser consultados, no blog liturgiaedireito.wordpress.com, os posts que sobre esses assuntos escrevi.

[31] Cerimonial dos Bispos, n° 91.

[32] Cerimonial dos Bispos, n° 87, -c-.

[33] Cerimonial dos Bispos, n° 94.

O DIACONATO RESTAURADO NO BRASIL

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“SEMANA SÃO LOURENÇO” – O DIACONATO RESTAURADO NO BRASIL

07/08/2020

“SEMANA SÃO LOURENÇO” - O DIACONATO RESTAURADO NO BRASIL

Diácono Alexandre Henrique Gruszynski – Arquidiocese de Porto Alegre (RS)

O Diácono Alexandre foi um dos quatro primeiros diáconos permanentes brasileiros pós-restauração. Foi ordenado, juntamente com Pedro Cardoso da Silva, de Quirinópolis (GO), Diocese de Jataí (GO); Benigno Lopes Rios e João Gonçalves Pereira Neto, da Arquidiocese de São Salvador (BA), pelo Papa Paulo VI, em missa do Congresso Eucarístico Internacional de Bogotá, Colômbia, no dia 22 de agosto de 1968. Somente o Diácono Alexandre está vivo.  

O caríssimo diácono partilhou experiências da caminhada de vida e do diaconado para a “Semana São Lourenço”.

Alguns marcos da trajetória

            Foi-me pedido que dissesse ou escrevesse alguma coisa sobre mim e sobre “os velhos tempos”, no Brasil, do Diaconato chamado “permanente”, que eu preferiria chamar de estável. É que sou o sobrevivente dentre os quatro primeiros que, na América Latina, foram ordenados Diáconos sem a pretensão de virem a ser, adiante, ordenados presbíteros e, quiçá, bispos.

            Esquecemos, muito frequentemente, que a Igreja nasceu no Oriente, nasceu Oriental, e só mais adiante, com a ida de São Pedro para Roma, e, por outro lado, com a presença do Império Romano no Oriente, veio a firmar-se também no Ocidente. A Igreja é nativamente Oriental, e no Oriente, de modo geral, nunca1 deixou de ter, a par de bispos e presbíteros, também diáconos, ordenados para serem diáconos, na esteira do relato da instituição destes contido no Livro dos Atos dos Apóstolos. Cabe talvez lembrar que estes primeiros, embora se diga na Escritura que foram destinados ao serviço das mesas, logo adiante se veem, no mesmo Livro, situações em que eles ensinam e batizam.

            Embora se encontre, na Igreja Ocidental, especialmente na Romana, exemplos de diáconos que permaneceram diáconos e assim serviram a seus bispos (veja-se o caso de São Lourenço), mais adiante, por razões que não cabe no momento aqui analisar, surgiu a regra de que não mais se ordenassem diáconos senão aqueles que pretendiam adiante ser ordenados ao sacerdócio, contrariando a tradição das Igrejas Orientais.

            Em meados do século passado livros e artigos publicados na Europa movimentaram alguns setores da Igreja do Ocidente no sentido da eliminação daquela regra que só admitia a ordenação ao diaconato de candidatos ao sacerdócio. De Schamoni, em 1953, é o livro sugestivamente intitulado “Pais de Família Ordenados Diáconos”. (2) Josef Hornef retomou o assunto de vários artigos, que fora escrevendo sobre o tema, em obra intitulada Kommt der Diakon der fruehen Kirche wieder? publicado em tradução brasileira pela Editora Vozes em 19613. Winninger compareceu com um escrito na coletânea Présence Chrétienne,4 publicado também separadamente. (5) No Brasil, cabe mencionar o artigo do Frei Constantino Koser, OFM, publicado em 1959. (6)

            Essas publicações, algumas ecoando escritos do século anterior, fizeram surgir muitas outras, notadamente artigos em Revistas, a respeito do tema, de modo que ele inevitavelmente surgiria no 2° Concílio do Vaticano, celebrado a partir de 1962, O Concílio, provocado basicamente por um grupo de Bispos da região entre o Sudoeste da Alemanha, da Bélgica, de Luxemburgo e do Norte da França, abordou o tema no documento sobre a Igreja, que em Latim começa com as palavras Lumen gentium, permitindo (n° 29) a restauração do diaconato como grau permanente da hierarquia na Igreja Latina, dependendo de decisão de cada Conferência de Bispos. Em algumas das Igrejas Orientais, possivelmente por influência da Igreja Latina, ocorreu uma certa decadência, a que se contrapôs o 2° Concílio do Vaticano através do documento Orientalium Ecclesiarum: Para que a antiga disciplina do Sacramento da Ordem vigore novamente nas Igrejas Orientais, deseja este sagrado Concílio que a instituição do diaconado permanente seja restaurada onde caiu em desuso, na perspectiva abordada nos escritos antes mencionados, acessível também a homens maduros já casados.

            Cabe mencionar, para melhor visão dessa fase preparatória às primeiras ordenações, o que escreveram em 1966 os já mencionados Hornef e Winninger. (7). Muito interessante também o artigo que pode ser encontrado através da Internet em: https://www.dominicanajournal.org/wp-content/files/old-journal archive/vol52/no3/dominicanav52n3deacontheparish.pdf. E, em uma obra mais recente (mas não tanto…), também das Éditions du Cerf, intitulada Le Diaconat Permanent. (8) As Conferências de Bispos, que até então serviam para que os Bispos de um país ou de uma região apenas sintonizassem seus pontos de vista, passaram a ter, a partir do Concílio, poder deliberativo.

            Os Bispos do Brasil aproveitavam a sua presença coletiva em Roma, por ocasião das sessões do Concílio, nos anos 1962-1965, para realizar as Assembleias Gerais da CNBB, e assim, ainda em 1964, diante do estabelecido no n° 29 da Lumen gentium, decidiram que o diaconato seria restaurado no Brasil, como grau permanente da hierarquia, e acessível somente a casados. Tal decisão, quanto se saiba, foi registrada em Ata, mas não chegou a ser objeto de um ato formal.

            A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil buscando, a partir do Concílio, tornar efetiva sua ação, organizou-se em Secretariados Regionais, compreendendo o Episcopado de um ou mais Estados integrantes da República. Os Bispos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina constituíram, assim, o Regional Sul-3 da CNBB, que veio a ter sede em Porto Alegre. (9) E os Bispos do Regional Sul-3 resolveram, diante da decisão do Episcopado Brasileiro, organizar um Curso de Preparação para o Diaconato para os candidatos das correspondentes Dioceses.

            Esse Curso foi planejado como Curso de Férias, em regime de dedicação total, em cinco etapas, sendo cada uma com 10 a 15 dias (nos meses de janeiro e de julho) e para ser realizado em Porto Alegre. Foi iniciado em janeiro de 1967. A primeira etapa foi na Vila Betânia, uma Casa de Retiros no Bairro Cascata, mas as seguintes não mais foram em Porto Alegre e sim em Viamão, no então Seminário. Os alunos eram 15, provenientes de várias Dioceses do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina; o Diretor do Curso foi o Rev. Luiz Colussi, da Diocese de Caxias do Sul (depois Bispo Diocesano de Lins, SP e de Caçador, SC). Soube-se, na época, que também em Goiânia e em Salvador da Bahia foram também, por essa época, instalados Cursos. Mais tarde os de Santa Catarina se desligaram do Sul-3 e constituíram o Sul-4.

            Fui convidado pelo então Bispo-Auxiliar de Porto Alegre, Dom José Ivo Lorscheiter, em carta de 1/1/1967, para fazer o Curso. E o fiz, ainda que o tenha concluído depois da ordenação. Cabe mencionar que, havendo ao tempo de aluno da PUC e, logo adiante, de Professor na Faculdade de Direito, vinha eu mantendo, desde o início da década de 1950, bastante atividade no contexto eclesial, especialmente na área da Liturgia; desde 1961 integrava a Comissão de Liturgia, Música e Arte Sacra da Arquidiocese e atuava na Liturgia na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, em Porto Alegre, onde, aliás, continuei atuando, já como Diácono, até 1996, passando então a servir na Paróquia da Catedral, aliás minha Paróquia territorial desde 1961. Ademais, era professor de Direito Eclesiástico na Faculdade Direito da PUCRS desde 1956, e o fui até 2002. Tinha, assim, parece, um background adequado à ordenação.

            Em 1968 deveria realizar-se em Bogotá, Colômbia, o 39° Congresso Eucarístico Internacional e na programação estava previsto um dia para o Sacramento da Ordem. Em Bogotá (Diocese Primaz das Américas) estava sediado o Conselho Episcopal Latino-Americano, organização que congregava as Conferências de Bispos da América Latina, e que, como organismo eclesial, participou da organização do Congresso. Foi o CELAM que, sabedor da existência do Curso em Porto Alegre, indagou se não haveria candidato a diácono que pudesse ser ordenado na celebração integrante do Congresso, que teria a presidência do Papa, então Paulo VI. Sondado, aceitei o convite.

            Nesse meio tempo, entretanto, o Papa editara em 18 de junho de 1967, o Motu proprio Sacrum Diaconatus Ordinem, onde ficou esclarecido, entre outras coisas, que a restauração, em cada âmbito territorial, do diaconato como grau estável, deveria ser formalizada em documento a ser submetido à aprovação do Sumo Pontífice. A decisão do Episcopado Brasileiro, como dito acima, não chegara a constituir um documento formal, que pudesse ser submetido à aprovação da autoridade suprema da Igreja. Estava-se em julho de 1968, o Congresso em Bogotá era em agosto. Não se sabia de iniciativa da CNBB em providenciar tal documento, de modo que – a fim de que a situação pudesse ser regularizada – urgia fazê-lo.

            Foi assim que numa gélida noite de julho, no Seminário de Viamão, tratei, juntamente com o Diretor do Curso (Pe. Colussi) de redigir o necessário texto, a fim de ser ainda submetido ao plenário da CNBB (então reunido, como sempre nos meses de julho, no Rio de Janeiro). Na manhã seguinte fui ao Escritório da VARIG, no Centro de Porto Alegre, e sem maior problema um funcionário se dispôs a fazer entrega do texto, no mesmo dia, no local da reunião dos Bispos, a Dom Vicente Scherer, então Arcebispo de Porto Alegre. O que foi feito. É bom lembrar que nem se imaginava Internet e a comunicação telefônica era extremamente precária.

            O texto que preparamos foi aprovado pela Assembleia, com uma ressalva, feita de resto pelo próprio Dom Vicente, que riscou a palavra desde e escreveu mesmo. É que se tinha notícia de que os Bispos, quando tomaram ainda em Roma a decisão de restaurar o diaconato no Brasil teriam decidido que seria somente para casados. O texto que eu escrevera e fora revisado pelo Pe. Colussi procurou manter essa decisão, mas a perspectiva em julho de 1968 foi outra.

            De retorno do Rio de Janeiro Dom Vicente passou-me o original do texto que eu lhe remetera (com a sua emenda) e também aprovou que eu viesse a ser ordenado, e ordenado por outro Bispo que não ele, eis que estava eu vinculado à Arquidiocese de Porto Alegre, e a ordenação cabia portanto a ele (que, aliás, fora o Pároco da minha infância e adolescência). Cabe lembrar, também, que outro aluno de nosso Curso de Porto Alegre, Vitorio Fontana, da Diocese de Santa Maria, também esteve por aceitar a ordenação em Bogotá, mas, por motivos de que não cheguei a tomar conhecimento, desistiu, sendo mais tarde ordenado em Santa Maria. Como era de lei à época, recebi, entre 15 e 10 dias antes da viagem a Bogotá, as chamadas ordens menores e o subdiaconato.

            Os dias que precederam a viagem a Bogotá foram um tanto agitados, na época viajava-se menos pelo mundo… Por outro lado recebi, em meu pequeno apartamento onde morava então, entre outros, um grupo da RAI (Rádio e Televisão Italiana) que realizou uma entrevista comigo e o Rev. René Laurentin, sediado em Paris (e que fora Perito no Concílio, onde ficara amigo de Dom Vicente), sendo que este publicou depois uma reportagem no Le Figaro, de Paris, exatamente no dia da ordenação (22 de agosto). Na reportagem não deixou de mencionar o fato de eu ser casado com uma Assistente Social e Luterana…

            Acompanharam-me na viagem a Bogotá minha mãe Emília e minha mulher, Cecy; nossos filhos, então dois, ficaram em São Paulo, com a família de uma irmã da Cecy. Em Bogotá ficamos hospedados em uma Paróquia (Sagrado Coração); seu Pároco era também o Cerimoniário Litúrgico do Congresso… Só lá em Bogotá fiquei sabendo que seríamos quatro, todos brasileiros, um de Jataí e dois de Salvador, os que iríamos ser ordenados ao diaconato para continuarmos diáconos, isso ao lado de outros 37 que eram candidatos ao sacerdócio. E cerca de 150 diáconos iriam, na mesma celebração, ser ordenados presbíteros.

            Fomos, assim, os quatro, os primeiros diáconos estáveis da América Latina, sendo eu, agora, o único sobrevivente. Antes de nós, na Diocese de Colônia, tinham sido ordenados (abril de 1968) os primeiros da Europa. Em contato com essa Diocese, na época em que iriam transcorrer os 50 anos de nossa ordenação em Bogotá, fui informado de que nenhum daqueles de Colônia continuava em atividade. E, como escrevi acima, também os outros três brasileiros não mais vivem.

            Minhas atividades ligadas ao Diaconato não se afastaram das linhas em quevinha tratando de servir à Igreja, conquanto, assim o creio, a partir daí fortalecido pelagraça do Sacramento. Na área do Direito Canônico participei de numerosos Congressos e Encontros, nacionais e internacionais, ligados à área. Sou co-fundador (1986) da Sociedade Brasileira de Canonistas (iniciativa do Pe. Jesus Hortal, S.I., depois Reitor da

PUCRJ) e dela fui Presidente por um biênio (1999-2001), sendo também membro da Société Internationale de Droit Canonique et de Legislations Religieuses, com sede em Paris. E, principalmente na fase inicial da renovação litúrgica consequente ao Concílio, tive significativa participação nas tarefas correspondentes, tanto no nível arquidiocesano como no do Regional Sul-3 da CNBB. Participei também com minha mulher, em Roma

e no Vaticano, das celebrações dedicadas aos Diáconos no Jubileu 2000.

            Atualmente, estando aposentado como Procurador do Estado, cargo para que fui nomeado, após concurso, em 1964, e também (pelo INSS) como Professor (que fui, por 46 anos) da PUCRS, permaneço como Juiz do Tribunal Eclesiástico de Porto Alegre (desde 1987, tendo atuado como Advogado junto ao Tribunal desde 1974) e atuo na Liturgia na Catedral Metropolitana de Porto Alegre, inclusive na celebração diária da Missa vespertina e na das Vésperas cantadas em dois dias da semana (ora, porém, estou em reclusão domiciliar por motivo da Covid-19…).

            Aos que se interessarem por outras informações que me digam respeito posso indicar a busca pelo meu Currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/5585984543756574) e o acesso a meu blog (www.liturgiaedireito.wordpress.com). Aos Colegas a quem cabe o canto do Exsultet na noite da Páscoa posso sugerir que vejam no YouTube a gravação que alguém (não sei quem…) fez e postou há alguns anos atrás: https://www.youtube.com/watch?v=Opdfa80Bw50

            Quando da comemoração de 35 anos de minha ordenação preparei com a ajuda de minha filha Ana Cláudia, um grande painel com fotos e reproduções de publicações e documentos, que ficou exposto na Sacristia da Catedral e que depois transformei em uma apresentação do PowerPoint.

Citações:

2 SCHAMONI, Wilhelm. Familienvaeter als geweihte Diakone? Paderborn, 1953.

3 HORNEF, Josef. Voltará o Diácono da Igreja Primitiva? Petrópolis, RJ. Editora Vozes Limitada. 1961

4 WINNINGER, Paul. Vers un renouveau du diaconat, in: Présence Chrétienne, Paris, 1958.

5 WINNINGER, Paul. Vers un renouveau du diaconat, Paris, Desclée de Brouwer, 1958, 214 p.

6 KOSER, OFM, Constantino. Diáconos Profissionais na Igreja do Século XX? in: Revista Eclesiástica Brasileira, set. 1959. Petrópolis, RJ. Editora Vozes Limitada.

7 HORNEF, J. et WINNINGER, P. Chronique de la restauration du diaconat (1945-1965) in: WINNINGER, Paul et CONGAR, Yves (eds), Le Diacre dans l’Eglise, Paris. Cerf, 1966, pp. 205-222.

8 DUMONS, Bruno et MOULINET, Daniel. Le Diaconat Permanent – Relectires et Perspectives. Paris. Cerf. 2007.

CAUSAS INCIDENTAIS

CAUSAS INCIDENTAIS

CAUSAS INCIDENTAIS

NOÇÃO, PRESSUPOSTOS

O Cân. 1587 nos ensina o que são causas incidentais, dizendo que Tem-se uma causa incidental cada vez que, iniciado o processo pela citação, é levantada uma questão que, embora não contida expressamente no libelo com que se introduza a lide, é todavia de tal modo conexa com a causa que, as mais das vezes, deve ser resolvida antes da causa principal.

Não se trata, pois, de um incidente processual. A incidentalidade aparece como um adjetivo que qualifica o substantivo causa, quer se use o adjetivo incidental, quer se use o termo incidente como adjetivo: causa incidente, como diz a tradução para o português da Ed. Loyola.

O substantivo, pois, é a causa, a questão, que é dita incidental enquanto, porque conexa com a causa principal, pode influir ou até condicionar a sentença definitiva que o Tribunal deverá dar sobre o mérito da causa principal.

E a causa incidente ou incidental é uma causa, porque constitui um ponto controvertido que, pelo seu nexo, lógico e substancial, com a causa principal, exige solução prévia à da questão principal, uma vez que é ou pode ser condição do êxito da decisão da causa principal ou de seu conteúdo.

Por isso se a questão incidental não tem fundamento, ou não tem o alegado nexo com a causa principal, deve ser rejeitada liminarmente.

Note-se que não se consideram causas incidentais as questões que hajam surgido antes da citação, quando, de resto, a instância ainda não teve início. Não se pode falar em questão incidental antes de iniciada a instância. As questões referentes à aceitação ou não do libelo, à exceção de incompetência do Tribunal, ou de suspeição do juiz, etc. são questões preliminares, não incidentais.

Todavia, como se assemelham às causas incidentais, o processo a ser aplicado para seu tratamento é o mesmo utilizado para o tratamento das causas incidentais. Veja-se norma específica no Cân. 1462, § 2.

Entretanto, se alguma questão que, na instância inicial, é preliminar, for levantada em grau de apelação, ela se constitui em questão incidental, mesmo se proposta antes de se dar a citação correspondente à segunda (ou ulterior) instância, porque a relação processual já existe constituída (tanto que pode perimir a instância no grau de apelação antes da realização efetiva da citação, nesse grau, à parte apelada).

Mas a matéria da causa incidental tanto pode estar relacionada com o mérito da causa como com o processo, no sentido de procedimento. 

Entenda-se bem que igualmente não são causas incidentais aquelas que tramitam em outro Tribunal paralelamente à causa considerada principal. Muito menos se o Tribunal for civil.

Não se confunda, também, causa incidental com causa objetivamente conexa, nem com reconvenção. Para que se possa dizer que há causa incidental é necessário que haja conexão, mas essa conexão não pode resultar da existência, entre as duas, de um elemento comum entre os elementos objetivos da ação.

QUEM PODE PROPOR

As causas incidentais podem ser propostas:

 por qualquer das partes, incluído o Promotor de Justiça e o Defensor do Vínculo, que a elas se equiparam quando atuam no processo;

‚ pelo próprio juiz, como se pode ver no § 2 do Cân. 1452;

ƒ por terceiros intervenientes (Cân. 1596).

COMO, ONDE, A QUEM SE PROPÕEM

A causa incidente se propõe por escrito ou oralmente, perante o juiz competente para definir a causa principal, indicando-se o nexo existente entre ela e a causa principal (Cân. 1588).

É claro que, se a petição é oral (e às vezes há de ser oral, porque se faz no curso de uma audiência), o notário deve, mediante determinação do juiz, lavrar ata (no direito brasileiro se diria melhor: o juiz deve mandar tomar por termo a petição), etc., cf. Cân. 1503.

O Cân. 1588 é bastante claro quanto ao requisito de indicar-se o nexo entre as duas causas, que é o fundamento jurídico de tratar-se de causa incidental. É preciso mostrar ao juiz  o fundamento objetivo do pedido e ‚ a necessidade de ser julgado com precedência sobre a causa principal.

COMO DEVEM SER RESOLVIDAS – A TRAMITAÇÃO

Se o Cân. 1588 é claro, o seguinte, 1589, é um exemplo de como não se deveria redigir um texto legal. Diz o seguinte:

Cân. 1589 — § 1 – Recebida a petição e ouvidas as partes, decida o juiz, com a máxima rapidez, se a causa incidental proposta parece ter fundamento e nexo com o processo principal ou se, pelo contrário, deve ser liminarmente rejeitada; e, caso a admita, se é de tal importância que deva ser resolvida mediante sentença interlocutória ou mediante decreto.

§ 2 – Se, todavia, julgar que a questão incidental não deva ser resolvida antes da sentença definitiva, determine que se a tenha em conta quando for definida a causa principal.

Tentemos ir por partes e por ordem.

Recebida a petição escrita, ou tomada por termo a petição oral, o juiz deve ouvir as partes. Isto significa que às partes (incluso portanto, nas matrimoniais, o Defensor do Vínculo e, se atuante, o Promotor de Justiça) deve ser dado um prazo para se manifestarem sobre a petição. Se o Juiz deve decidir com a máxima rapidez, parece evidente que o prazo concedido às partes para essa manifestação inicial não pode ser longo. Pode mesmo o Juiz, se a petição foi oral e feita ao ensejo de uma audiência (de interrogatório de parte ou testemunha, por exemplo) e as partes, representadas por seus procuradores, bem como o Defensor do Vínculo, estão presentes, ouvir (no sentido comum da palavra) imediatamente as essas partes, fazendo tomar por termo as suas manifestações.

É importante notar que as manifestações a serem requeridas das partes, neste primeiro momento, são manifestações não sobre o mérito da causa incidental, mas simplesmente sobre a sua admissibilidade. As manifestações sobre o mérito deverão vir a seu tempo, uma vez admitida a causa incidental.

Diante da petição e das manifestações das partes (ou de seu silêncio), deve o Juiz decidir, sem demora, sobre dois aspectos:  se há fumus boni iuris no pedido e ‚ se há o (supostamente alegado) nexo com a causa principal; faltando um ou ambos deve rejeitar o pedido. Essa decisão é consubstanciada em um decreto do Juiz (Presidente do Colegiado se a causa for matrimonial, ao que parece; se a questão for meramente processual, poderia ser o Auditor).

Se os dois requisitos, de acordo com a decisão do Juiz, estão presentes, passa o mesmo Juiz à fase seguinte, quando, também com a máxima rapidez deverá optar  ou por deixar a questão para ser considerada ao ensejo da decisão da causa principal, ‚ ou por  que seja resolvida desde logo.

Se a opção for pela solução desde logo, o mesmo Juiz deve na mesma oportunidade fazer outra opção:  se a decisão da causa incidental se dará mediante decreto ou ‚ se, em razão da gravidade deverá ser decidida mediante sentença, que será uma sentença interlocutória.

Essa decisão, de deixar para considerar o mérito da questão incidental juntamente com o mérito da causa, ou de vê-lo decidido previamente, e nesse caso ou por decreto ou por sentença, também será consubstanciada em um decreto do Juiz.

Se a decisão do Juiz foi no sentido de que a causa incidental deva ser resolvida desde logo, e por decreto, como se trata de decisão judicial, a causa deve ser tratada iudiciali modo (cf. Cân. 1607) e portanto há de ser observado o princípio do contraditório: às partes deve ser dada oportunidade de se pronunciarem sobre o mérito da causa (incidental) mediante alegações ou animadversiones (que muitos chamam de memoriais, termo que na praxe processual brasileira tem sentido diferente), ou pelo menos em uma discussão oral como a prevista no Cân. 1667.  Quem emitirá, porém o decreto que decidirá a questão incidental? Quem é competente para decidir a causa principal, portanto, no caso das causas matrimoniais que tramitam no rito ordinário, o Colegiado, e não o Juiz Relator ou Auditor ou Presidente. Pode entretanto o Colegiado optar por confiar o julgamento da questão incidental, se for mediante decreto, ao Auditor ou ao Presidente do Colegiado, conforme o autoriza o Cân. 1590, § 2.  

Se a decisão do Juiz foi no sentido de que a causa incidental deva ser resolvida desde logo, mas, em razão da gravidade do assunto, por sentença, uma outra decisão ainda deve ser tomada: é que o rito para processar-se a causa incidental passa a ser daí por diante, em regra, o do processo contencioso oral (Cân. 1656/1670), a não ser que, dada a gravidade do assunto, o Juiz entenda diversamente.  Deve, pois, o Juiz tomar essa decisão: segundo  o modelo do processo contencioso oral ou ‚ segundo o modelo ordinário.  Qualquer que tenha sido o rito escolhido (se não tiver havido opção pelo rito ordinário prevalecerá o rito do contencioso oral), deverá haver a determinação formal dos limites da controvérsia (determinação do dubium a receber resposta na sentença), etc. O julgamento, sendo por sentença, sempre caberá, nas causas matrimoniais, ao Colegiado.

Todos os decretos referentes às causas incidentais devem, evidentemente, ser motivados. O decreto que julga o mérito da causa deve, precisamente porque não se trata de decisão de mero trâmite, expor as razões de fato e de direito que o embasam. E se a decisão final se der mediante sentença, quer tenha sido utilizado o rito ordinário, quer o do processo oral, essa sentença, embora interlocutória, deve conformar-se às regras que normatizam todas as sentenças (Cf. Cân. 1613).

RECURSOS CABÍVEIS

Pode-se interpor apelação contra a decisão de uma causa incidental? Parece que não. Com efeito, o Cân. 1629 determina que não cabe apelação, entre outras situações, de uma sentença ou de um decreto numa causa que o direito determina que deva ser decidida com a máxima rapidez (nº 5º). É o caso das questões incidentais, que devem ser decididas expeditissime. Assim ensina pelo menos parte da doutrina, e uma boa parte, aplicando o expeditissime que figura no Cân. 1589 a toda a situação, e o faz apoiada na natureza mesma do assunto, e também em uma interpretação histórica: a Comissão Preparatória do Código, quando foi proposto que se dissesse expressamente que a sentença ou o decreto decisórios de causa incidental eram inapeláveis, respondeu que isso era inútil, porque a inapelabilidade resultava desde logo do expeditissime que constava do Cân. que veio a receber o nº 1589.  De saída já se disse que a redação era por demais confusa…

Excepcionalmente, entretanto, poderá caber apelação: se a sentença interlocutória, ou o decreto, têm força de sentença definitiva, porque põem fim ou ao próprio processo ou a algum grau de juízo, pelo menos com referência a alguma parte da causa (Cân. 1618).

Entretanto, tendo-se em conta o que prescreve o Cân. 1505, § 4, há de se concluir que, nas causas matrimoniais, que devem ser julgadas por Colegiado, contra a decisão do Juiz que não admite a petição introdutória da causa incidental cabe recurso (que não é apelação) ao Colegiado. O mesmo Colegiado também deve decidir o recurso com a máxima rapidez, de sorte que contra a decisão do Colegiado não caberá apelação.

REGRAS E CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES

Alguns aspectos complementares merecem atenção.

Vimos antes que o Juiz pode optar por deixar a questão ou causa incidental para ser considerada juntamente com a definição da causa principal.

Esse adiamento não tem como conseqüência necessária que a causa incidental vá realmente ser decidida juntamente com a causa principal, porque bem pode acontecer que, na evolução do processo, a questão incidental se esvazie, perca o objeto. Não haverá, então, decisão sobre a questão incidental.

De outro lado, dada desde logo a decisão da causa incidental, a mesma simples evolução do processo ou um pedido de qualquer das partes (evidentemente inclusos o Defensor do Vínculo ou do Promotor de Justiça, se atuam) também poderá levar ou o Juiz ou o Colegiado, aquele que deu a decisão, à convicção de que tal decisão deva ser revogada ou reformada.  O Cân. 1591 permite que isso se faça, havendo justa causa.  Mas a decisão de revogar ou reformar o decreto ou a sentença interlocutória, ainda que a iniciativa seja do Juiz ou do Tribunal, não pode ser adotada senão após ouvidas as partes, como estabelece o mesmo Cân. 1591. E a revogação só pode dar-se antes do término da causa principal (a tradução brasileira, das Ed. Loyola, pode trazer confusão, porque usa a expressão «conclusão da causa»; não se trata da conclusio in causa de que trata o Cân. 1599). Tratando-se de decreto editado pelo Auditor, autorizado pelo Colegiado, então sim, a revogação ou reforma só poderá ser decidida por ele antes da conclusio in causa, mas isso porque a sua função se esgota com o término da fase instrutória.

Homilia para um Casamento

HOMILIA PARA A CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO DE

MARC PERE GÓRRIZ BLANCH E  GABRIELA GRUSZYNSKI SANSEVERINO

CATEDRAL METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE – OITO DE JANEIRO DE 2022

Caros filhos, genro, netos, caros parentes e amigos, senhoras e senhores convidados.

Esta é uma celebração jurídica, sim, mas também litúrgica. O que Gabriela e Marc estão hoje fazendo aqui, diante de nós, é manifestar, por sua simples presença até, mas também pela sua atitude e por suas palavras, que existe amor entre eles, que existe entre eles não só o desejo, mas também a intenção, de atuar esse amor numa comunhão de vida, num consórcio para toda a vida.  E se o amor é autêntico, se ele está efetivamente, por ambos os lados, permeado pela chama do Espírito  — o Espírito Santo é fogo, como diz a Escritura —  então esse amor tem chance de realizar, em cada um e em ambos, esse empreendimento difícil que é o casamento cristão.

Digo difícil, como já disse no casamento dos meus filhos … difícil porque a nossa condição humana, de prisioneiros do material, de inclinados a satisfazer a nós próprios, de limitados na nossa com-preensão do bem, essa condição nos dificulta a nossa realização plena.  As dificuldades que surgirão na vida em comum serão cotidianas, todo mundo sabe, serão rotineiras até, talvez, e poderá haver em certos mo-mentos também dificuldades mais radicais, ou mais abrangentes.  E será preciso muito amor para superar as grandes e as pequenas dificuldades.

Mas de outra parte os cristãos crêem que os sacramentos conferem graça, ou seja, dão ao sujeito do sacramento uma disposição peculiar, favorável, para realizar-se na perspectiva daquele específico sacramento.  Assim, o sacramento que reciprocamente os noivos se conferem ao manifestar, na forma regulada pela comunidade eclesial, o seu consenso, é um sinal da graça que realmente lhes é dada do alto, para bem viverem a sua realidade conjugal e poderem ser, destarte, como casal, um significante tanto da união entre o Verbo de Deus e o corpo humano por ele assumido, como da união entre o Cristo, cabeça da Igreja, com o seu corpo que a Igreja é.

Os noivos escolheram como primeira leitura, para esta celebração, um trecho da Carta que São Paulo escreveu aos cristãos da cidade de Colossos, os colossenses. Sabeis onde era essa Cidade? Vale a pena procurar no Google… Em um primeiro momento São Paulo trata da pessoa de Cristo, a seguir adverte sobre falsas doutrinas que estariam se introduzindo naquela comunidade, para por fim falar da união dos cristãos com Cristo. É um trechinho dessa parte que ouvimos aqui, quando ele fala do amor, o amor que é o vínculo da perfeição. São Paulo se refere a todos os membros da comunidade, mas o texto ganha uma perspectiva peculiar quando aplicado aos que se casam.

Os noivos casam porque se amam. Amar-se é muito mais do que a camaradagem, a escapada, muito mais do que a paixão repentina ou o amor romântico. O amor engaja em definitivo numa corresponsabilidade de um pelo outro, e ambos tornados capazes de tomar decisões e de assumir compromissos em conjunto. Chegado a esse nível é que o amor (como o mesmo São Paulo salienta em outra de suas Cartas) deixa de ser um dever entre outros: ele dá alma a todos os deveres, ele repercute em todas as atitudes, é ele que traz a paz de Cristo aos nossos corações.

É nessa perspectiva que o matrimônio aparece com um lugar de salvação, de graça e de serviço, e isso não por si só, como instituição natural, que é, mas porque serve como esse sinal do amor e do serviço do Cristo para com a Igreja, a Igreja à qual ele quer ver incorporada toda a humanidade.

Depois ouvistes o trecho[1] bastante conhecido do Cap. 7 do Evangelho segundo São Mateus. É um texto belo e forte. Mostra-nos que ficar implorando a bênção do alto sem cada dia converter-se é uma contradição, quem sabe uma superstição até, na medida em que corresponderia a uma crença mágica, e não a uma verdadeira fé.

Amar-se constitui, para o casal, a primeira obediência à vontade do Pai, mas amar-se com toda a dimensão que Deus mesmo dá ao amor — e aí está a complementaridade entre as duas Leituras.

Construir a casa sobre a rocha é acreditar do fundo da alma na Palavra do Senhor e viver com fé na maior lógica.  A promessa de que a casa suportará os ventos e as torrentes é dada àqueles que são lúcidos e humildes, aos que crêem no Amor.

Construir a casa sobre a rocha é ultrapassar as idéias e as declarações verbais de amor engajando-se em toda uma série de problemas concretos que a vida a dois (e depois, com os filhos, será a mais), como também a vida solo, traz. É transformar o amor em devotamento, é saber rezar conformando-se ao que vai ocorrendo, e ir enfrentando as tempestades com a audácia e a paciência de que Jesus deu o exemplo ao enfrentar a morte, sabendo que haveria de vencê-la pela ressureição. É saber usar, como falou o Papa Francisco há dias atrás, as palavras: por favor, desculpe, obrigado.

O Salmo que ouvimos após a Primeira Leitura, e de cuja recitação participamos pelo estribilho, serve bem para nos lembrar de que por mais que aprendamos, na vida e na escola, nas primeiras letras ou nos doutorados, nosso domínio sobre o mundo jamais será completo: Se o Senhor não constrói a casa, em vão trabalham os que a edificam.  Mesmo que estejamos construindo a casa sobre a rocha, nosso trabalho não bastará para que ela ganhe a firmeza desejável.

Estou convicto de que não esquecereis, caros noivos, que a própria palavra que a língua lusitana utiliza para designar essa união que estais vós dois pretendendo constituir definitivamente, tem origem exatamente na palavra casa:  Gabriela e Marc, vós estais casando, ou seja, concluindo a vossa casa. Não só no sentido material, que é deveras importante  — é bem conhecido o dito quem casa quer casa —  mas integralmente, como pessoas humanas de corpo e alma, estais estabelecendo a vossa casa. Estamos diante de um casamento.

Meus caros noivos, meus e seus amigos que aqui vos reunistes conosco nesta ocasião.  A existência cristã consiste em realizar na vida o mistério celebrado nos sacramentos, em integrar na vida o que é recebido na fé.

Como qualquer outro sacramento da Igreja, também o Matrimônio é um sinal de morte e ressurreição, no caso através desse  diminuir de cada um para que o outro cresça, certo de que ele próprio assim crescerá, nesse doar-se constante que é o essencial do casamento, nessa união que marca a expectativa e é sinal antecipador da vinda do Cristo, aquela segunda vinda, quando o Cristo virá para a ele unir definitivamente a Igreja, no episódio que culminará com o que o Livro do Apocalipse e, a partir dele, a Liturgia, chamam de «Ceia das Núpcias do Cordeiro».

Em torno a essa Ceia da Vida Eterna espero que estejamos também todos nós reunidos.

Toda a nossa vida humana, de seres dotados de inteligência, de vontade, de liberdade, está repleta de realidades que valem não pelo que são, em si mesmas, mas que valem pelo que elas significam.

A palavra que dizemos, o gesto que fazemos, a flor que oferecemos, o passo que damos, a música que tocamos e que ouvimos, a bandeira que hasteamos ou agitamos, o cálice que erguemos, o olho que piscamos, e quanta coisa mais, não é pelo som, pelo movimento muscular ou pelo conteúdo energético que valem; valem pelo que significam, valem pelo que simbolizam.

Também com o que hoje aqui estamos fazendo e presenciando é assim, como toda a Liturgia, de resto, é um processo desse tipo: viver, através de sinais sensíveis, viver e comunicar uma realidade invisível, espiritual. 


[1] Mt 7,21; 24-29

JURISDIÇÃO

Alexandre Henrique Gruszynski

Nota preliminar: Este texto é o Roteiro para a aula correspondente no Curso de Aperfeiçoamento (pós-graduação lato sensu) em Processo Canônico de Nulidade de Matrimônio, realizado pela Faculdade de Direito da PUCRS em 2001-2003.  

Olho por olho, dente por dente.

E cada um tomando a si realizar a justiça, ou o que lhe parece ser justiça. Cada um defendendo o seu direito, ou, melhor dizendo, o que ele próprio quer que seja seu direito, com as próprias mãos.

Estaríamos no império do mais forte. Nada de direito para as minorias, para os mais fracos. Estaríamos no regime plenamente animal, podemos dizer.

À medida que o homem foi se conhecendo, foi utilizando os seus dons naturais, e por que não dizer sobrenaturais, ele foi superando essa situação. À medida que a sociedade política, a sociedade civil, se foi organizando, à própria sociedade se foi reconhecendo a tarefa de fazer justiça, de realizar a justiça. E gradativamente se foi vedando o exercício da justiça pelas próprias mãos.

A sociedade organizada, pois, assumiu essa função de compor os litígios entre as pessoas.

Porque normalmente, na vida social do homem, as relações jurídicas que se estabelecem entre as pessoas não criam litígio. Não só porque as pessoas até às vezes estabelecem entre elas regras que evitem litígio, mas porque o normal é que cada um faça o que lhe cabe, que cada um cumpra o seu dever.

Mas ocorre que em determinadas situações alguém, e pode ser tanto uma pessoa singular, uma pessoa física, como também uma coletividade, uma universitas personarum ou rerum, não cumpre o que lhe compete, e surge então o litígio.  Outras vezes o litígio surge não porque alguém não cumpre o que devia, mas porque o outro quer que ele cumpra o que não devia. O litígio, naturalmente, é exceção.

É aí que surge a função do Estado de, uma vez a tanto chamado, cumprir o seu dever de compor o litígio, aplicando o Direito (por ele reconhecido ou editado) ao caso em controvérsia —  aplicando o Direito àquele caso concreto.  

É a esse serviço, e ao correspondente poder, que na sociedade estatal se chama de jurisdição.

Como todos sabem, a palavra jurisdição em português vem do latim iuris + dictio: ação de dizer o direito, ditar o direito.

Em sentido estrito usa-se a expressão precisamente no sentido de ditar o direito, dizer o direito no caso concreto, aplicá-lo ao caso concreto.

Mas a expressão é também usada, mesmo no direito estatal, em um sentido mais amplo, referente a qualquer exercício de poder (ou a qualquer titularidade de poder até) para ditar direito. Digo mesmo no direito estatal, porque no direito da Igreja utiliza-se ainda muito mais a expressão no sentido amplo.

É claro que este «dizer o direito para o caso concreto» está sujeito à imperfeição da condição humana.  Na aula inicial de nosso Curso já foi pedida a atenção para  a ocorrência da sentença injusta, da sentença que não corresponde à verdade, e portanto não corresponde à justiça. Mas busca-se e deve-se buscar com toda a honestidade e com todo o empenho, precisamente a conformidade, do caso concreto resolvido, com a verdade e a justiça.

Parece tranquila, entre nós,  aquela tese que sempre é reportada a Montesquieu, no seu «O Espírito das Leis», tese da distinção que teoricamente existe entre poder de dar as leis, poder de conduzir a comunidade dentro das leis e poder de aplicar a lei ao caso concreto quando surge litígio.  Mas o que importa não é somente fazer a distinção teórica, mas também na prática repartir essas três funções entre pessoas diversas, pessoas diferentes, para que não haja opressão por parte dos titulares dessas funções, titulares esses aos quais, para exercê-las, se reconhece o poder correspondente.

Na verdade a distinção, ao menos teórica, é anterior a Montesquieu, ela vem de Locke, um dos integrantes daquele trio de filósofos empiristas: Locke, Berkeley, Hume; Locke viveu entre 1632 e 1704. Ao menos até certo ponto Aristóteles também era um empirista: nada está em nosso intelecto que antes não tenha estado no sentido…  Mas Locke se opunha, na época, a Descartes, o racionalista. Locke já pregava o princípio da divisão de poderes, mas ele se limitou a pregar a separação do poder de dar as leis, por um lado, do poder de governar, por outro lado, para só assim se evitar a tirania.  Por muito tempo não se distinguiu o Poder Judiciário do Poder Executivo (também na Igreja).  Mas Locke, que era contemporâneo de Luís XIV, pelo menos já apregoava a separação entre legislativo e executivo, exatamente se opondo (ele estava na Grã-Bretanha…) a Luís XIV, que proclamava «o Estado sou eu», tipicamente um Estado absolutista sem limites.

A distinção entre poder judiciário e poder executivo, ou administrativo, como se sabe, não se fez com tanta facilidade, e na Igreja até se deu com maior dificuldade que na sociedade estatal. Até hoje, no direito da Igreja, há áreas onde, ao menos na prática, as coisas não se fazem com a esperável clareza, relativamente à distinção de poderes.

Essa aplicação do direito, ou do provável direito, ao caso concreto, que é a atuação do poder de jurisdição, vai dar-se através do que se chama de processo. A jurisdição, pois, liga-se logicamente ao processo. E como a jurisdição não atua sem provocação, é preciso que alguém desencadeie o processo, é necessária uma ação.

Os termos jurisdição, processo, ação, portanto, quando entendidos em seu sentido técnico, estrito, aparecem indissoluvelmente ligados entre si.

Jurisdição e processo.

Dúzias de conceitos ou definições de jurisdição e de processo poderiam ser apresentadas.

Jurisdição

Pode-se dizer que jurisdição é poder, função e atividade de aplicar o direito a um fato concreto, pelos órgãos públicos a tanto destinados, obtendo-se dessarte a composição da lide. Poder porque atua cogentemente como manifestação da potestas da sociedade organizada, seja estatal seja eclesial, e o faz definitivamente frente às partes em conflito; função porque cumpre a finalidade, a missão, o múnus de fazer a ordem jurídica valer, diante de uma pretensão a que houve resistência; e atividade porque consiste em uma série de atos e manifestações externas de declaração do direito e de sua aplicação ao caso concreto: trata-se de concretizar obrigações para as quais há título.

Essa jurisdição é pública por excelência. Mesmo que o juiz deva ser um conciliador, um personagem que antes de mais nada deve procurar que o litígio se supere sem ter de decidir, ele ainda assim exerce a função em nome da sociedade.

É substitutiva, no sentido de que a sociedade substitui o suposto titular do suposto direito para realizá-lo, se for o caso. A sociedade, como mencionado inicialmente, não permite que cada um faça justiça com as próprias mãos. Nem com a própria cabeça.

É indelegável: as atribuições dos órgãos incumbidos de ditar justiça no caso concreto não podem, ao menos em regra, ser delegadas.

É inerte, no sentido de que a atividade jurisdicional somente se exerce mediante provocação, não por iniciativa própria (embora historicamente tenha havido épocas, na Igreja, em que o Juiz podia arrogar-se a iniciativa do processo). Nemo iudex sine actore. O que, se não garante, ao menos favorece a imparcialidade… Mas essa inércia é apenas em relação ao conflito que é submetido ao juiz; não em relação a ele ser o condutor do processo.

É indeclinável. O Poder Judiciário não pode recusar-se a julgar. Pode um juiz declinar de sua competência, mas o Poder como tal não pode eximir-se de julgar, uma vez provocado regularmente.

É inarredável, no sentido de que a atividade dos órgãos jurisidicionais não pode sofrer oposição juridicamente válida de qualquer instituto para  impedir ou evitar que essa mesma jurisdição alcance seus objetivos e produza seus efeitos.

Os que gostam da concisão do Latim terão satisfação em registrar que alguns autores referem como poderes inerentes à jurisdição: cognitio, vocatio, iudicium, coerctio, executio.

Cognitio: o titular da Iurisdictio, o detentor do poder judiciário portanto, provocado por alguém que se julga injustiçado, toma conhecimento da situação inquinada de injusta.

Vocatio: o juiz chama a pessoa a quem é atribuída a responsabilidade pela situação dita injusta.

Iudicium: o juiz julga a questão, aplicando o direito ao caso concreto a ele submetido.

Coerctio : essa aplicação do direito ao caso concreto inclui, substancialmente, uma coerção, um obrigar a que as coisas se realizem como determinado pelo juiz.

Executio: alguém irá, em nome da autoridade, fazer com que efetivamente se realize o determinado pelo titular da jurisdição. 

Poder de Jurisdição na Igreja

Mas existe na Igreja esse Poder de Jurisdição? No sentido amplo e no sentido estrito?

Sem dúvida. A Igreja, como sociedade, existe com uma finalidade, o bem comum transcendente, e com os serviços necessários para que essa finalidade seja atingida. Para que esses serviços ou funções, necessários, sejam prestados adequadamente, é preciso que as pessoas que os prestam disponham da necessária autoridade ou poder.

Na perspectiva eclesial acolhida no último Concílio Ecumênico, especialmente no documento Lumen gentium, esses serviços, funções ou missões são expressos em três palavras: ensino, santificação, governo, correspondendo à missão do Cristo, profeta, sacerdote e rei, da qual todos os fiéis participam, mas que constituem responsabilidade peculiar dos ordenados.

O Código de Direito Canônico de 1983 admitiu explicitamente, ademais, que a função de governo, ou o poder de reger (de regime) apresenta-se também na Igreja com as mesmas três facetas com que é conhecido nas sociedades políticas: legislativo, executivo e judiciário.

É interessante ler, a esta altura, os números 18, 19, 21, 22 e 27 da Lumen gentium e verificar como se referem a poder, ministério, governar, apascentar (que é um modo de dirigir ou guiar ou governar), missão, sociedade hierarquicamente organizada, servir, encargo, presidir, governo, dirigir, administração, ofícios, reger, ligar e desligar, mandar, legislar, julgar, ordenar, …embora na perspectiva do Bom Pastor, que não veio para ser servido, mas para servir. E sempre ligando poder a serviço.

Também no Decreto do mesmo Concílio Christus Dominus, nos números 8 e 11 está explicitado que os Bispos possuem, para prestar o seu serviço, do poder de reger, além dos de ensinar e de santificar. E no nº 6 do Decreto Presbyterorum Ordinis, ao tratar dos cooperadores do Bispo, o Concílio reitera que esses possuem, evidentemente para edificação, um poder espiritual, uma autoridade (embora parcial).

Aos Diáconos são impostas as mãos não para o sacerdócio, mas para o ministério, diz a Lumen Gentium no nº 29. Dedicados aos ofícios da caridade e da administração, …refere mais adiante, no mesmo número. Portanto também participam do serviço, e para esse serviço recebem poder e são fortalecidos com a graça sacramental.

Todos os que integram a hierarquia,[1] pois, ao menos genericamente estão prepostos ao serviço na Igreja, e para tanto dispõem de algum poder. Na medida em que esse poder for o de dizer direito, estar-se-á diante do poder de jurisdição lato sensu. A investidura em um cargo ou ofício na estrutura da Igreja (ou então a delegação de poder ou competência)  especificará esse poder e lhe dará a medida.

Não cabe aqui senão mencionar a ocorrência de uma larga discussão sobre se a ordenação é pressuposto essencial para poder exercer jurisdição (lato sensu), ou não. O próprio Código dá a impressão de que o legislador não quis enfrentar a questão, pois estabeleceu no Cân. 129 que De acordo com as disposições do direito, capazes do poder de governo, que na verdade existe na Igreja por instituição divina e que também é chamado poder de jurisdição, são aqueles que foram marcados por ordem sagrada. No exercício do mesmo poder os fiéis leigos podem cooperar, de acordo com o direito.   O Código dos Cânones das Igrejas Orientais tem a norma correspondente no Cân. 979, mais enxuto: Ao poder de governo, que existe na Igreja por instituição divina, estão aptos os constituídos em ordem sagrada. No exercício do poder de governo os outros fiéis cristãos podem cooperar, de acordo com as disposições do direito.

A separação entre o chamado poder de ordem e o dito poder de jurisdição é ilustrada por alguns autores com exemplos variados e os mesmos (e outros…) tentam justificar ou explicar, de modos diferentes, a investidura de leigos e de diáconos em funções a rigor episcopais.

O Código de Direito Canônico vigente determina que, caso o fiel escolhido para o múnus de Pontífice Romano não seja bispo, seja imediatamente ordenado bispo. Coerentemente com a norma que estabelece que o poder sobre a Igreja inteira o eleito a obtém pela eleição legítima somada à consagração episcopal.[2] O novo Código colocou-se, assim, em sintonia com o II Concílio Ecumênico do Vaticano, que classificou o poder do Romano Pontífice como episcopal.

Mas e as situações que a História registra, em que sucessores de Pedro, eleitos para tanto, exerceram jurisdição sobre a Igreja inteira sem serem nem sacerdotes, vindo a ser ordenados bispos um ou vários meses depois? E o caso de Adriano V, que exerceu o pontificado supremo até a morte sendo diácono?[3]

E os Arcediagos (ou Arquidiáconos, se preferirem essa forma) que correspondiam (séc. VIII em diante, principalmente XII-XIII) mais ou menos aos atuais Vigários-Gerais, com poderes (exceto os estritamente resultantes da Ordem) praticamente iguais aos do Bispo Diocesano (inclusive como Juízes), sendo diáconos?  

E como se explica, hoje, o juiz leigo? Há quem diga que se trata de uma delegação do Papa (genérica, através da edição do Código), ou de uma «delegação a iure»… negando assim que se trate de poder ordinário, … embora resulte da investidura no ofício de Juiz.[4] 

Processo.

É claro que todos entendemos o que significa processo no sentido comum da palavra. O latim até nos pode ajudar: o verbo procedo, procedere significa ir para diante, adiantar-se, avançar, andar, progredir.  Sabemos o que é procissão. E existe também o termo processão: lembrem-se da discussão geradora do cisma do Oriente: o problema da processão do Espírito Santo: qui ex Patre Filioque procedit, ou qui ex Patre (tantum) procedit…

(Interessante que — segundo o famoso dicionário Latim-Português Saraiva —  também pode significar alongar-se, …  só que é alongar-se não no sentido de demorar, como acontece demais entre nós na vida judiciária, mas alongar-se a partir de alguma coisa, crescer, como que formando um braço, uma protuberância…)

O processo, então, do ponto de vista jurídico, é o modo pelo qual a jurisdição atua. É a soma, ou talvez melhor dizendo, o complexo de atos que se seguem com vista à composição do litígio. Ou, mais formalmente: o conjunto de atos (processuais…) que se coordenam e se desenvolvem, a partir da propositura da ação e até a exequibilidade definitiva da sentença, para que a sociedade organizada cumpra sua obrigação de entregar a prestação jurisdicional invocada, solucionando a lide com a aplicação, a ela, do direito objetivo.  A causa final do processo é esta: a solução do litígio. Os atos processuais são, pois, atos jurídicos mediante os quais o processo se constitui, se desenvolve e termina. E os atos processuais não serão válidos se não forem realizados por quem têm relação com o processo: as partes, seus patronos, o Juiz e os Servidores do Tribunal ou junto ao Tribunal (Defensor do Vínculo, Promotor de Justiça) e as pessoas que contribuem na fase probatória.

Duas ou três observações a propósito.

Costuma-se advertir para não confundir processo com procedimento. Procedimento seria antes o modo pelo qual se realizam, sequencialmente, os atos processuais. Como se procede? assi e assá.

Nos nossos dias parece que ninguém mais contesta seriamente que o processo configura uma relação jurídica. Mas tal perspectiva é relativamente nova. Foi um germânico, von Bülow, que em 1868, no Livro que em português se chamaria Teoria das exceções processuais e dos pressupostos processuais formulou essa teoria, de que o processo é na verdade uma relação jurídica. Uma relação jurídica poligonal, em princípio triangular (juiz-demandante-demandado), mas eventualmente com participação de terceiro, como por exemplo o defensor do vínculo (na verdade é um «quarto», porque já tínhamos três…)

Cabe todavia lembrar que quando se fala em processo a palavra significa principalmente processo judiciário, ou judicial, correspondente à função judiciária. Mas também se usa falar em processo administrativo, que corresponde à função administrativa ou executiva — o Livro do Código de Direito Canônico intitulado «Dos Processos» trata de alguns processos meramente administrativos, como o são o de dissolução do matrimônio por dispensa pontifícia  no caso de casamento contraído mas não consumado, ou o processo de declaração de morte presumida. E se fala em processo contencioso-administrativo, julgado por um Tribunal administrativo (no caso, como veremos adiante, a 2ª Seção do Tribunal da Assinatura Apostólica).

O processo, assim, é o modo pelo qual a jurisdição atua.

E como o nosso Código de Direito Canônico vigente contempla a jurisdição e o processo, globalmente?

Temos de ir aos Cânones introdutórios do Livro VII, intitulado De Processibus, que começa com o cân. 1400.

O Cân. 1400 nos vai mostrar o tríplice objeto material do processo canônico; o 1401 o âmbito do poder judiciário da Igreja e na Igreja.

Diz o Cân. 1400 do Código de1983:

§ 1. São objeto de julgamento:

1° direitos de pessoas físicas ou jurídicas a serem defendidos ou reivindicados e fatos jurídicos a serem declarados;

2° delitos, no que se refere a impor ou declarar uma pena.

§ 2. Controvérsias originadas de atos de poder administrativo, entretanto, somente podem ser apresentadas ao Superior ou ao tribunal administrativo.

O Cân. 1552, correspondente, no Código de 1917, ao Cân. 1400, começa de modo um pouco diferente, tentando definir o que seja iudicium ecclesiasticum:

«§ 1. Denomina-se juízo eclesiástico a discussão e a decisão legítima, ante um tribunal eclesiástico, de uma controvérsia sobre matérias cujo conhecimento pertence à Igreja.»  

O § 2 do mesmo  Cân. corresponde ao § 1 do Cân. 1400 do Código vigente. Não consta do Código anterior norma que equivalha ao § 2 do Cân. 1400 do Código atual.  

Esse § 2 do Cân. 1400, que deixa entrever a criação de Tribunais Administrativos para definir as controvérsias provenientes de um ato da administração pública, é pois, uma novidade introduzida pelo Código de 1983. Mas a parte do projeto de Código apresentado ao Papa, que determinaria como seria o processo contencioso-administrativo, foi supressa pelo próprio Papa, na última revisão que ele fez com sete juristas diversos; não foi promulgada. Restou, assim, apenas a Assinatura Apostólica como Tribunal para o contencioso-administrativo.

Embora o novo Código, pois, não defina o que seja iudicium ecclesiasticum, pode-se dele extrair um conceito do que seja matéria de iudicium ecclesiasticum, ou «juízo eclesiástico»:

– disceptatio controversiae: o caso torna-se uma causa;

– haverá uma definição, que é a decisão judicial ou jurisdicional;

– é perante um Tribunal: trata-se da função jurisdicional;

– legítima: o juiz está limitado pela lei: tem o dever de fazer justiça aplicando a lei;

– em matérias de competência eclesiástica (delimitada, a seguir, no Cân. 1402).

Já o Cân. 1401 prescreve:

Por seu poder próprio e exclusivo a Igreja conhece:

1°. causas relativas às coisas espirituais e causas com elas conexas;

2°. violação das leis eclesiásticas e atos que tenham caráter de pecado, no que se refere á determinação da culpa  e à imposição de penas eclesiásticas.

O Cân. 1553 do Código de 1917 era bem mais abrangente:

A Igreja julga, por direito próprio e exclusivo:

1o. as causas que se referem a coisas espirituais ou a elas anexas;

2o. a infração das leis eclesiásticas e de tudo aquilo em que houvesse razão de pecado, enquanto se refere à determinação da culpa e imposição de penas eclesiásticas;

3todas as causas, tanto contenciosas como criminais, das pessoas que gozam do privilégio de foro, de acordo com as disposições dos cânones 120, 614, 680.[5]

Mas no Código atual, então, no Cân. 1401, o legislador estabeleceu claramente limites tanto objetivos (matéria)  como subjetivos (pessoas) em relação à competência que a Igreja declara ter.

O 2º Concílio Ecumênico do Vaticano claramente reivindicou à Igreja, como sociedade autônoma, originária, suprema in ordine suo, o poder de regime ou de governo ou de jurisdição lato sensu. E parte essencial desse poder, ou faceta desse poder é o munus iudicandi,  cujo objetivo é decidir, de modo judicial, sobre a conformidade, ou não, com a lei, das ações concretas dos fiéis e sobre os efeitos jurídicos que daí decorrem. Objeto do processo eclesiástico, pois, serão sempre direitos e fatos jurídicos, mas que não são abstratos e sim concretos, realizando-se nas pessoas e nas coisas, e aí está o âmbito do poder judiciário da Igreja, circunscrito pelo que estabelece o Cân. 1401.

Há possibilidade, é óbvio, de conflito, nesta área, como em tantas outras, com a sociedade civil, com a sociedade política ou estatal; mas a Igreja reconhece nas coisas temporais a jurisdição do Estado; reivindica para si tudo quanto se refere ao âmbito do pecado, a capacidade de removê-lo (se assim podemos dizer) e a própria necessidade de removê-lo com penas tanto espirituais como temporais.

Como o novo Código eliminou o chamado privilégio de foro que os clérigos tinham de acordo com o Código de 1917, naturalmente também desapareceu qualquer dispositivo que correspondesse  ao nº 3º do § 1 do Cân. 1533 do Código de  1917.

Vale a pena ler de novo o Cân. 1401.

E para concluir, vejamos o que dispõe o Cân. 1402:

Cân. 1402. Todos os tribunais da Igreja regem-se pelos cânones que seguem, ressalvadas as normas dos Ttribunais da Sé Apostólica.

Essas «Normas Próprias» são antes uma complementação que uma derrogação do direito comum, mas em certos pontos efetivamente o derrogam.


[1] Hierarquia, aliás, etimologicamente, significa poder sagrado.

[2] Cân. 331-332.

[3] Sobre o assunto é interessante ler: HORTAL SANCHEZ, J., De initio potestatis primatialis Romani Pontificis. Investigatio historico-iuridica a tempore Sancti Gregorii Magni usque ad tempus Clementis V. Analecta Gregoriana, vol. 167. Libreria Editrice dell’Università Gregoriana, Roma, 1968.

[4] Cf. Cân. 131.

[5] ou seja: os clérigos, os religiosos, os membros das hoje chamadas «Sociedades de Vida Apostólica».

OS SALMOS

NOTA PRELIMINAR: O texto que segue é o Roteiro para uma Palestra proferida em 2004 para os integrantes de um “Grupo de Oração” da Catedral Metropolitana de Porto Alegre.

Introdução: A Bíblia

– conjunto

– épocas

– autores

– tipos de livros

– as traduções

– os salmos

Os Salmos

– são 150 ?

– a autoria

– as contagens

– o conteúdo

– o agrupamento em 5 «títulos»

– os gêneros literários

– o vocabulário

            – encadeamento

            – antíteses

            – palavras-chave

– os salmos como oração

Introdução: A Bíblia

Todos vós sabeis o que a palavra «bíblia» significa; que se trata de uma palavra de origem grega com o significado de «livro», e ela aparece em tantas palavra compostas que usamos mais ou menos frequentemente: Biblioteca, bibliômano, bibliofilia, bibliognosia, bibliografia, etc.  A Bíblia, seria, pois «O Livro». Um livro, um volume, constituindo a compilação das Escrituras Sagradas, dos Escritos Sagrados.

Trata-se, desde logo, como se vê, de um conjunto de escritos que o cristianismo reconhece como sendo sagrados, no sentido de serem textos que dizem respeito a Deus e a suas manifestações.

Não só os cristãos, mas também os israelitas. Subjaz à perspectiva de cada grupo, porém, o reconhecer ou não Jesus como o esperado Messias. Para os cristãos esse grande conjunto compreende não só os escritos da Antiga Aliança, ou do Antigo Testamento, como muitos dizem, mas também os escritos vinculados à Nova Aliança, ou Novo Testamento, ou seja, a Jesus, reconhecido como o Cristo esperado. É bom talvez esclarecer que o sentido original da palavra «testamento» é exatamente «aliança»; atualmente a expressão testamento é reservada, na linguagem jurídica, mas também na linguagem comum, para designar a aliança que uma pessoa oferece, em previsão de sua morte, a outra pessoa, que poderá, depois, aceitar ou não essa oferta, traduzida em bens que passariam ao beneficiário do legado.

Pois bem, os israelitas reconhecem, como escritos sagrados apenas os relativos à Antiga Aliança, nós, cristãos, também os relativos à Nova Aliança, e esta já seria uma grande divisão do conjunto que é a Bíblia.

Épocas – Sabemos, também, que esse conjunto todo de escritos foi sendo formado aos poucos, e a ordem em que esses escritos são apresentados não corresponde necessariamente à ordem em que foram confeccionados.  Muitos dos chamados «Livros» que compõem a Bíblia são igualmente compilações feitas em épocas sucessivas por autores diversos; assim foi o caso dos Salmos. Quando falamos do Livro do Profeta Isaías, isso não quer dizer que tenha Isaías quem escreveu o texto: o texto foi escrito tempos depois da passagem de Isaías pelo mundo, e por mais de uma pessoa.  Nos Livros da Nova Aliança já a autoria material é mais precisa. Digo a autoria material porque na verdade o autor da Escritura é Deus, que nos fala através de homens, que alguns escreveram o que lhes é atribuído, outros apenas o falaram, deixando a pósteros a tarefa de pôr em texto o que falaram.  E mesmo em alguns Livros da Antiga Aliança há uma mistura, uma intercalação de textos provenientes de autores diversos dentro do mesmo Livro, como acontece reiteradamente no Gênesis e no Êxodo, e em outros Livros do chamado Pentateuco (os cinco primeiros Livros da Bíblia).

De alguns dos Livros pode-se com razoável segurança estabelecer a época em que foram escritos; em relação a outros o «compasso», se assim podemos dizer, tem de ser muito mais aberto, abrangendo às vezes vários séculos.  O que se cultivava era a tradição oral; só mais tarde as coisas passaram para o papel (ou o barro, ou o papiro…); parece que textos escritos não seriam anteriores a 1250 A.C., e o último escrito dataria do final do século I D.C.

Línguas e Traduções – A maior parte dos Livros da Antiga Aliança que compõem a Bíblia foi escrita em hebraico; alguns em aramaico (a língua que Jesus falou em seu tempo), que teria sido usado para o Evangelho segundo Mateus;  o grego comum (koiné) para os Livros da Nova Aliança (exceto talvez Mateus) e,  dos Livros da Antiga Aliança, o Livro da Sabedoria.

O que coloca para nós a questão das traduções.

O que não estava em grego foi traduzido uma primeira vez para o grego na chamada «Versão dos Setenta»; essa tradução é anterior a Jesus, é do século III A.C.; compreende portanto apenas a Antiga Aliança e é a base da versão aceita pela Igreja Católica para a Antiga Aliança. Nesse conjunto estão incluídos Livros que não aparecem na relação oficial hebraica, que é a aceita pelas Igrejas protestantes em geral (nem todas).

São Jerônimo providenciou em uma tradução da Bíblia para o latim; fez isso entre 385 e 405.  Essa tradução recebeu o nome de «Vulgata», e a partir do Concílio de Trento, tornou-se a Bíblia oficial da Igreja Católica, por muito tempo. 

Mais recentemente têm sido feitas traduções diretamente das línguas originais, e a mais credenciada é a chamada «Bible de Jérusalem», assim chamada porque feita por biblistas baseados naquela Cidade. Essa tradução moderna para o francês foi retraduzida para numerosas línguas, entre as quais o português do Brasil, onde apareceu nas Edições Paulinas.  

A divisão da Bíblia em Capítulos, tal como a temos actualmente, coube a Estêvão Langton, futuro arcebispo de Canterbury (Inglaterra). Em 1220, antes de ser sagrado como tal, sendo professor da Sorbonne, em Paris, decidiu criar uma divisão em capítulos, mais ou menos iguais. O seu êxito foi tão retumbante, que todos os doutores da Universidade de Paris, a adoptaram, ficando assim consagrado o seu valor perante a Igreja.

Langton tinha feito a sua divisão sobre um novo texto latino da Bíblia, ou seja, a Vulgata, que acabava de ser corrigido e purificado de velhos erros de transcrição. Esta divisão foi logo copiada sobre o texto hebraico, e mais tarde transcrita na versão grega chamada dos Setenta.

Quando Langton morreu, em 1228, os livreiros de Paris já tinham divulgado a sua criação numa nova versão latina que acabavam de editar, chamada Bíblia parisiense, a primeira Bíblia da História dividida em capítulos.

Foi tão grande a aceitação desta minuciosa obra do futuro arcebispo, que até os próprios judeus a admitiram para a sua Bíblia hebraica. De facto, em 1525, Jacob Ben Jayim publicou uma Bíblia rabínica em Veneza, que continha os capítulos de Langton. Desde então, o texto hebreu adoptou esta mesma classificação.

Até hoje, conserva-se na Biblioteca Nacional de Paris, com o número 14417, a Bíblia latina utilizada pelo arcebispo de Canterbury para o seu singular trabalho e que, sem ele próprio imaginar, estava destinado a estender-se por todo o mundo.

Mas, à medida que o estudo da Bíblia ganhava em precisão e minuciosidade, estas grandes secções de cada livro, chamadas capítulos, mostraram-se insuficientes. Era necessário subdividi-las em partes mais pequenas com numerações próprias, a fim de localizar com maior rapidez e exactidão as frases e palavras desejadas.

Uma das primeiras tentativas foi a do dominicano italiano Santos Pagnino, o qual, em 1528 publicou em Lyon uma Bíblia completa subdividida em frases mais curtas, que tinham um sentido mais ou menos completo: os actuais versículos.

Contudo, não caberia a ele a glória de ser o autor do nosso actual sistema de classificação de versículos, mas a Roberto Stefano, um editor protestante. Este aceitou a divisão feita por Santos Pagnino, para os livros do Antigo Testamento, e resolveu adaptá-la com pequenos retoques. Mas, curiosamente, o dominicano não tinha posto versículos nos 7 livros deuterocanónicos (isto é, nos livros de Tobit, Judit, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria, Ben Sira e Baruc), pelo que, Stefano teve que completar este trabalho.

Ao contrário, a divisão do Novo Testamento não lhe agradou, e decidiu substitui-la por outra, feita por ele próprio. Seu filho conta que se entregou a esta tarefa durante uma viagem a cavalo de Paris a Lyon.

Stefano publicou primeiro o Novo Testamento em 1551, e depois a Bíblia completa em 1555. E foi ele o organizador e divulgador do uso de versículos em toda a Bíblia, sistema que, com o tempo, se viria a impor no mundo inteiro.

Esta divisão, tal como a anterior em capítulos, também foi feita sobre um texto latino da Bíblia. Só em 1572 é que se publicou a primeira Bíblia hebraica com os versículos.

Finalmente, o papa Clemente VIII fez publicar uma nova versão da Bíblia em latim para uso oficial da Igreja, pois o texto anterior, de tanto ser copiado à mão, tinha sido deformado. A obra viu a luz a 9 de Novembro de 1592, e foi a primeira edição da Igreja Católica com a divisão definitiva de capítulos e versículos.

Deste modo, ficou constituída a fachada exibida atualmente em todas as nossas Bíblias. Mas, longe de serem perfeitas, estas divisões mostram muitas deficiências, que revelam o modo arbitrário como foram feitas. Os estudiosos atuais podem detectá-las, mas os seus autores não estavam, então, em condições de conhecê-las.

Por exemplo, Estêvão Langton (já antes mencionado), no livro da Sabedoria interrompe um discurso sobre os pecadores para colocar o capítulo 2, quando o mais natural teria sido colocá-lo um versículo mais acima, onde naturalmente começa. Outro exemplo mais grave é o capítulo 6 de Daniel, que começa a meio de uma frase inconclusiva, quando deveria ter sido posto algumas palavras mais adiante.

Também os versículos mostram esta inexatidão. Um dos casos mais curiosos é o de Génesis 2, no qual o versículo 4 abrange duas frases, pertencendo a primeira a um relato do séc. VI, e a segunda a outro… quatrocentos anos posterior! E ambos formam um mesmo versículo! Também em Isaías 22, a primeira parte do versículo 8 pertence a um oráculo do profeta, enquanto que a segunda, de outro estilo e teor, foi escrita duzentos anos mais tarde.

OS SALMOS

Pois bem, entre os 73 Livros que os católicos reconhecem como integrantes da Bíblia está o Livro dos Salmos.

Habitualmente se diz que são 150 os Salmos, mas a maior parte dos manuscritos da Versão dos 70 inclui um Salmo 151, e uma versão hebraica desse poema foi encontrada nos Manuscritos do Mar Morto.

Tradicionalmente os Salmos eram considerados obra do Rei Davi, mas atualmente se os reconhece como provenientes de autores ou grupos de autores diversos, nem todos conhecidos. A maior parte dos Salmos começa com um verso introdutório que o atribui a um autor ou indica algo sobre as suas circunstâncias, e apenas 73 invocam Davi como autor. É certo, porém, que os Salmos não foram «postos no papel» até cerca do século VI antes de Cristo, e como o reino de Davi data de cerca de 1000  A.C., qualquer material de Davi teria sido conservado mediante tradição oral.

O Livro dos Salmos, por analogia com o Pentateuco, é dividido em 5 partes, cada uma concluindo com uma doxologia ou bênção. Segundo a numeração hebraica:

1 – Salmos 1-41

2 – Salmos 42-72

3 – Salmos 73-89

4 – Salmos 90-106

5 – Salmos 107-150.

Cabe aqui lembrar que em razão da divergência de numeração, acima referida, entre a versão dos 70 (e a Vulgata) e a versão hebraica, ocorre uma decalagem de numeração também para os Salmos.

Assim, 

LXX – VulgataHebraica
1 a 81 a 8
9 9A     10 hebr.9
10 a 11211 a 113
113 A114
113 B115
114 115116
116 a 145117 a 146
146 147147
148148
149149
150150

3. Não existe uma ordem lógica nos Salmos. «É verdade que, às vezes, encontramos alguns que foram ordenados com uma certa lógica, por exemplo, existem grupos de lamentações individuais (Sl 5-7; Sl 54-57; Sl 61-64; Sl 69-71; Sl 140-143), Salmos de ação de graças (Sl 40 e ss.), Hinos (Sl. 65 e ss.; Sl 95-100; Sl 103-105; Sl 134-136; Sl 145-150), cantos reais (Sl 20 e ss), lamentações comunitárias (Sl 89 e ss), provérbios sapienicias (Sl 127), Salmos alfabéticos (Sl 111 e ss). O grupo dos Salmos 74-83 trata do destino de Israel; os Salmos 105-106 contêm narrações; os Salmos 46-48 são de conteúdo escatológico. Mas é muito mais frequente que não ocorra nenhum tipo de relação interna entre os Salmos sucessivos; mesmo dentro do grupo dos Salmos 120-124, conhecido como “cantos de peregrinação”, existem gêneros muito diversos.» (Gunkel).  

4. O Livro dos Salmos aparece não como uma obra isolada, mas sim formando parte do campo da poesia religiosa dentro e fora de Israel (Babilônia, Assíria, Egito), desde o terceiro milênio antes de Cristo até a época da difusão do cristianismo. São muitos os poemas que entram nesse contexto: o Cântico do Mar Vermelho de Moisés (Ex 15), o Cãntico de Débora (Juízes 5), o Cântico de Ação de Graças de Ana (1 Samuel, 2); o de Davi (2 Samuel, 22), que reaparece no Sl 18; o de Jonas (Jonas 2) e o de Ezequias (Isaías 38, 9 e ss); alguns versos do Livro das Crônicas (1 Crônicas, 16, 8 e ss.); os Cânticos  de Tobias (Tobias 13) e de Judite (judite 16); os Cânticos de Azarias e dos Três Jovens (Daniel 3). E mesmo no Novo Testamento, os Cãnticos de Maria (Lucas 1, 46 e ss), de Zacarias (Lucas 1, 57 e ss) e os do Apocalipse (Apocalipse 4, 11; 5, 9 e ss; 11, 17 e ss.; 15, 3 e ss.; 19, 6 e ss.).

5. O Livro dos Salmos manifesta a marca das diferentes épocas pelas quais passou a religiosidade israelita. A maior influência veio dos profetas. Os autores da alguns dos Salmos utilizam gêneros criados pelos profetas e, seguindo o seu exemplo, anunciam a vontade de Deus (Sl 50) e o sentido do futuro (Sal 82). O efeito mais significativo da influência profética, entretanto, foi o pouco valor concedido ao culto externo. «Os homens piedosos aprenderam a entoar seus cantos à margem de qualquer ação externa e independentemente do culto oficial» (Gunkel)

6. É certo que, na sua origem, a profecia nada tem a ver com a poesia religiosa. Em determinado momento, porém, os profetas utilizam a poesia dos Salmos para melhor expressarem sua mensagem. Assim, entoam lamentações para exprimir o sofrimento do povo ou do indivíduo (Jeremias 14, 1-6; 7-9; 19-22; Isaías 63, 11 e ss.; Miquéias 7, 7 e ss.; Jeremias 11, 18-20; 12, 1-6; 15, 15-21; 17, 12-18; Lamentações 3 e 5). Ou compõem cato e hinos e os põem na boca do Israel futuro, que os cantará quando, liberado de seus males, celebrará com júbilo a festa dedicada a seu Deus (Isaías 12; 25, 1 e ss.; 26, 1 e ss.; 42, 10-12; 49, 13; 52, 9 e ss.).

7. Os Salmos têm sua origem no culto de Israel. Há muitos, entretanto (a maior parte) nos quais não se faz qualquer alusão ao contexto cultual, ou tal alusão é muito pobre. Esses Salmos têm sua origem na oração privada e possuem um caráter mais pessoal. Daí os vários gêneros literários que se encontram no Livro dos Salmos. Há salmos de louvor, de ação de graças, salmos de petição ou rogação, salmos estritamente cultuais, salmos sapienciais (estes às vezes históricos, no sentido de lembrar o passado para ensinar uma conduta).    

No vocabulário, também, encontramos alguns pontos dignos de menção:

O princípio literário do paralelismo e da composição mediante pontos de encadeamento produz séries de palavras que se completam e se esclarecem mutuamente. Se conseguimos dar atenção e nos fixar nesse parentesco de imagens e de símbolos, podemos saborear  o salmo como que numa transfiguração: em vez de uma série aparentemente incoerente de metáforas ou comparações, ele se apresenta como uma composição unitária e homogênea.

Muitas e muitas vezes ocorrem diversas séries antitéticas de palavras ou de imagens. Assim, no Salmo 1:

justos = eleitos  <>  ímpios, perversos

palha dispersada pelo vento <> árvore plantada à beira da torrente

morte, perdição <> prosperar

Outras vezes, em razão do lugar que uma palavra ocupa no salmo, ou em razão de sua repetição no mesmo salmo, essa palavra como que ilumina a compreensão de todo o salmo; é a palavra-chave do salmo.  

Não se poderia fechar o sentido de um salmo em um conceito único, como ocorre quando se dá um título a um capítulo de um livro. Mas o próprio Saltério da Liturgia das Horas, na versão reformada após o II Concílio Ecumênico do Vaticano, põe à frente de cada salmo uma frase tirada do Novo Testamento, como uma sugestão a respeito da perspectiva em que esse salmo específico pode ser visto como uma prece cristã.

Os salmos como oração cristã

9. Una vez situado el salmo en su género, podemos proceder a su comprensión. Cada salmo tiene una unidad, que le da sentido y que puede presentar recursos muy variados. Además, cada salmo es único, tiene algo que le distingue. Hay salmos que no olvidamos. A ello añade cada cual su actitud, preocupaciones, el tono de su voz, su resonancia espiritual y corporal. Los sentidos pueden simbolizar experiencias espirituales: no sólo oir y ver, sino también gustar y tocar (Sal 34;63). Aparte del mensaje, el creyente hace suyos los sentimientos y el lenguaje de los salmos. Es lo que se llama apropiación: “El salmo queda abierto y disponible, incluso para el salto transcendental, cuando el orante de los salmos es, sin que pierdan su sentido precedente judío, Jesucristo. En la explicación de Agustín, Jesucristo pronuncia unos salmos como Dios, otros como hombre singular, otros como cabeza del cuerpo de la Iglesia. Al hacerse Jesús el orante de los salmos, los carga de nuevo sentido para los cristianos. De aquí arranca la llamada lectura cristiana de los salmos, que podría llamarse oración cristiana. La lectura comienza buscando si el salmo es citado en el NT, por ejemplo el salmo 22 en la pasión. Después examinará la presencia de símbolos y su transformación, después buscará situaciones equivalentes en la vida de la Iglesia” (Schökel).

10. Los salmos son, ante todo, un repertorio de oración. Para comprender a fondo los salmos, hay que orar personalmente con ellos. Israel tiene la convicción de ser un pueblo que habla con Dios, con un Dios vivo que habla con el hombre: El revela a Jacob su palabra, sus preceptos y sus juicios a Israel (Sal 147,19).

Os Salmos na verdade se tornaram a prece preferida da Igreja porque eles cantam os mistérios do Cristo. O cristão não lê os salmos, não declama os salmos, não canta os salmos como monumentos literários de uma cultura semítica do passado, mas «reza» os salmos, como sendo a própria expressão de sua libertação atual no Cristo.

Agindo assim o cristão não está agindo nem gratuitamente nem por uma ficção literária. O próprio Senhor fez uso dos salmos, em momento significativos de sua missão, ou cantando-os (ao término da ceia pascal na noite em que foi traído) ou citando versos de salmos.  Essas figuras proféticas receberam, então, a plenitude de sua significação, ou mesmo se realizaram na vida de Jesus. É à luz do Cristo que os salmos podem ser plenamente compreendidos.

Quando a Igreja retoma tais textos na Liturgia, ela o faz no presente do mistério do culto, em plena verdade. Do modo escolhido por Deus para se revelar aos homens aparecem ali nos salmos a vinda, o nascimento, a manifestação, a morte, a ressurreição, a ascensão e a volta do Senhor; seu julgamento de condenação dos ímpios e da salvação para os crentes; a prece do Cristo perseguido ou sua ação de graças de ressuscitado; a súplica da Igreja e de cada batizado em luta com Satã e o mundo, ou a a sua alegria e a certeza da Esposa salva pelo seu Esposo e cabeça.

Poderíamos ainda falar muito …

Conservou-se o texto, muito antigo, de uma longa carta de  Santo Atanásio (morreu em 373, foi Bispo de Alexandria) a um certo Marcelino, a respeito da interpretação dos salmos, que 17 séculos depois muito nos pode ensinar; não é por nada que o atual Papa a tenha mencionado quando se propôs a ministrar uma série de catequeses sobre os Salmos, nas tradicionais audiências públicas das 4as. feiras, que foi continuada a respeito dos cânticos que aparecem na Liturgia das Horas, como está ocorrendo nestas últimas semanas.

Talvez mais adiante possamos ler pelo menos alguns trechos dessa bela Carta.

Mas terminaria hoje lendo-vos a parte mais importante da alocução do Papa na 4ª. feira em que anunciou seu propósito, dia 28 de março de 2001.

É o seguinte:

AUDIÊNCIA  

Quarta-feira 28 de março de 2001

Os Salmos na Tradição da Igreja

Queridos irmãos e irmãs,

1. Na Carta Apostólica Novo millennio ineunte manifestei o desejo de que a Igreja se distinga cada vez mais na “arte da oração”, aprendendo-a sempre de novo dos lábios do Mestre divino (cf. n. 32). Este empenho deve ser vivido sobretudo na Liturgia, fonte e auge da vida eclesial. Nesta linha é importante prestar uma maior atenção pastoral à promoção da Liturgia das Horas como oração de todo o povo de Deus (cf. ibid., 34). De facto, se os sacerdotes e os religiosos têm um precioso mandamento para a celebrar, ela é contudo proposta ardentemente também aos leigos.

Propunha esta finalidade, há cerca de trinta anos, o meu venerado predecessor  Paulo  VI,  com  a  constituição Laudis canticum na qual delineava o modelo vigente desta oração, desejando que os Salmos e os Cânticos, estrutura básica da Liturgia das Horas, fossem compreendidos “com renovado amor pelo Povo de Deus” (AAS 63 [1971], 532).

É encorajador o facto de muitos leigos, quer nas paróquias quer nos agregados eclesiais, terem aprendido a valorizá-la. Contudo, ela permanece uma oração que requer uma adequada formação catequética e bíblica, para a poder apreciar profundamente.

Com esta finalidade, iniciamos hoje uma série de catequeses sobre os Salmos e sobre os Cânticos propostos na oração matutina das Laudes. Desta forma, desejo encorajar e ajudar todos a rezar com as mesmas palavras usadas por Jesus e que se encontram há milénios na oração de Israel e da Igreja.

2. Podemos introduzir-nos na compreensão dos Salmos através de vários caminhos. O primeiro consistiria em apresentar a sua estrutura literária, os seus autores, a sua formação, os contextos em que surgiram. Depois, seria sugestiva uma leitura que realçasse o seu carácter poético, que por vezes alcança níveis altíssimos de intuição lírica e de expressão simbólica. Não menos interessante seria percorrer novamente os Salmos considerando os vários sentimentos do ânimo humano que eles manifestam:  alegria, reconhecimento, acção de graças, amor, ternura, entusiasmo, mas também sofrimento intenso, recriminação, pedido de ajuda e de justiça, que por vezes acabam em cólera e imprecações. Nos Salmos, o ser humano encontra-se a si próprio completamente.

A nossa leitura terá sobretudo por finalidade evidenciar o significado religioso dos Salmos, mostrando como eles, mesmo  tendo  sido  escritos  há  tantos séculos  por  crentes  hebreus,  podem ser incluídos na oração dos discípulos de Cristo. Por isso, deixar-nos-emos ajudar pelos resultados da exegese, mas pôr-nos-emos juntos na escola da Tradição, sobretudo escutando os Padres da Igreja.

3. Com efeito, com profunda penetração espiritual, eles souberam discernir e indicar a grande “chave” de leitura dos Salmos no próprio Cristo, na plenitude do seu mistério. Os Padres estavam convencidos disto:  nos Salmos fala-se de Cristo. De facto, Jesus ressuscitado aplicou a si próprio os Salmos quando disse aos discípulos:  “era necessário que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24, 44). Os Padres acrescentam que nos Salmos se fala a Cristo ou até que é Cristo quem fala. Dizendo isto, eles não pensavam apenas na pessoa individual de Jesus, mas no Christus totus, no Cristo total, formado por Cristo chefe e pelos seus membros.

Surge assim, para o cristão, a possibilidade de ler o Saltério à luz de todo o mistério de Cristo. Precisamente esta óptica faz emergir também a sua dimensão eclesial, que é realçada de maneira particular pelo cântico coral dos Salmos. Compreende-se desta forma como os Salmos tenham sido assumidos, desde os primeiros séculos, como oração pelo Povo de Deus. Se, em alguns períodos históricos, se verificou uma tendência para preferir outras orações, foi grande mérito dos monges manter alta na Igreja a chama do Saltério. Um deles, S. Romualdo de Camaldoli, no início do segundo milénio cristão, chegou a defender que como afirma o seu biógrafo Bruno de Querfurt são os Salmos o único caminho para experimentar uma oração verdadeiramente profunda:  “Una via in psalmis” (Passio sanctorum Benedicti et Johannes ac sociorum eorundem:  MPH VI, 1983, 427).

4. Com esta afirmação, à primeira vista exagerada, na realidade ele ancorava-se na melhor tradição dos primeiros séculos cristãos, quando o Saltério se tinha tornado o livro por excelência da oração eclesial. Esta foi a opção vencedora em relação às tendências heréticas que continuamente atacavam a unidade de fé e de comunhão. A respeito disto, é interessante a maravilhosa leitura que Santo Atanásio escreveu a Marcelino na primeira metade do século IV quando a heresia ariana alastrava atentando contra a fé na divindade de Cristo. Perante os hereges que atraíam a si o povo também com cânticos e orações que eram agradáveis aos seus sentimentos religiosos, o grande Padre da Igreja dedicou-se com todas as suas energias a ensinar o Saltério transmitido pela Escritura (cf. PG 27, 12 ss.) Foi assim que ao “Pai Nosso”, a oração do Senhor por antonomásia, se acrescentou a praxe, que depressa se tornou universal entre os baptizados, da oração dos Salmos.

5. Graças também à oração comunitária dos Salmos, a consciência cristã recordou e compreendeu que é impossível dirigir-se ao Pai que habita nos céus sem uma autêntica comunhão de vida com os irmãos e as irmãs que habitam na terra. Além disso, inserindo-se vitalmente na tradição orante dos hebreus, os cristãos aprenderam a rezar cantando as magnalia Dei, isto é, as grandes maravilhas realizadas por Deus quer na criação do mundo e da humanidade, quer na história de Israel e da Igreja. Esta forma de oração tirada das Escrituras, não exclui decerto expressões mais livres, e elas continuarão não só a caracterizar a oração pessoal, mas também a enriquecer a própria oração litúrgica, por exemplo com hinos e cânticos. O livro do Saltério permanece contudo a fonte ideal da oração cristã, e nele se continuará a inspirar a Igreja no novo milénio.

ADVENTO

Alexandre Henrique Gruszynski

NOTA PRELIMINAR: Este texto foi escrito para distribuição entre os integrantes da Equipe de Liturgia da Catedral Metropolitana de Porto Alegre, em 2012.

História:

A primeira referência ao “Tempo do Advento” é encontrada na Espanha, quando no ano 380, o Sínodo de Saragoça prescreveu uma preparação de três semanas para a Epifania, data em que, antigamente, também se celebrava o Natal. Na França, Perpétuo, bispo de Tours, instituiu seis semanas de preparação para o Natal e, em Roma, o Sacramentário Gelasiano cita o Advento no fim do século V.

Há relatos de que o Advento começou a ser observado entre os séculos IV e VII em vários lugares do mundo, como preparação para a festa do Natal.

No final do século IV, na Gália  (atual França) e na Espanha, tinha caráter ascético,  com jejum, abstinência e duração de 6 semanas como na Quaresma (quaresma de S. Martinho). Esse caráter ascético para a preparação do Natal se devia à preparação dos catecúmenos para o batismo na festa da Epifania.

Somente no final do século VII, em Roma, é acrescentado o aspecto  escatológico do Advento, recordando a segunda vinda do Senhor, passando a ser celebrado durante 5 domingos.

Surgido na Igreja Católica, este tempo passou também para as igrejas reformadas, em particular à Anglicana, à Luterana, e à Metodista, dentre várias outras. A igreja Ortodoxa tem um período de quarenta dias de jejum em preparação ao Natal.

Características:

O Tempo do Advento possui dupla característica: sendo um tempo de preparação para as solenidades do Natal, em que se comemora a primeira vinda do Filho de Deus entre os homens, é também um tempo em que, por meio dessa lembrança, voltam-se os corações para a expectativa da segunda vinda do Cristo, no fim dos tempos. Por esse duplo motivo, o Tempo do Advento se apresenta como um tempo de piedosa e alegre expectativa.

O Tempo do Advento começa com as Primeiras Vésperas do domingo que cai no dia 30 de novembro ou no domingo que lhe fica mais próximo, terminando antes das Primeiras Vésperas do Natal do Senhor.

………..

Os dias de semana de 17 a 24 de dezembro inclusive visam de modo mais direto à preparação do Natal do Senhor. (Normas do Calendário Romano)

No Tempo do Advento o órgão e outros instrumentos musicais sejam usados com moderação tal que convenha à índole desse tempo, sem, contudo, antecipar aquela plena alegria do Natal do Senhor. (IGMR, 313, b) 

Teologia e espiritualidade:

O Advento recorda a dimensão histórica da salvação, evidencia a dimensão escatológica do mistério cristão e nos insere no caráter missionário da vinda de Cristo.

Ao serem aprofundados os textos litúrgicos desse tempo, constata-se na história da humanidade o mistério da vinda do Senhor, Jesus, que de fato se encarna e se torna presença salvífica na história, confirmando a promessa e a aliança feita ao povo de Israel. Deus que, ao se fazer carne, plenifica o tempo (Gl 4,4) e torna próximo o Reino (Mc 1,15).

O Advento recorda também o Deus da Revelação. Aquele que é, que era e que vem (Ap 1, 4-8), que está sempre realizando a salvação mas cuja consumação se cumprirá no “Dia do Senhor”, no final dos tempos.

O caráter missionário do Advento manifesta-se na Igreja pelo anúncio do Reino e a sua acolhida pelo coração do homem até a manifestação gloriosa de Cristo. As figuras de João Batista e Maria são exemplos concretos da vida missionária de cada cristão, quer preparando o caminho do Senhor, quer levando o Cristo ao irmão para o santificar. Não se pode esquecer que toda a humanidade e a criação vivem em clima de advento, de ansiosa espera da manifestação cada vez mais visível do Reino de Deus.

O tempo do Advento é tempo de esperança porque Cristo é a nossa esperança (I Tm 1, 1); esperança na renovação de todas as coisas, na libertação das nossas misérias, pecados, fraquezas, na vida eterna, esperança que nos forma na paciência diante das dificuldades e tribulações da vida, diante das perseguições, etc.

O Advento também é tempo propício à conversão. Sem um retorno de todo o ser a Cristo, não há como viver a alegria e a esperança na expectativa da Sua vinda. É necessário que “preparemos o caminho do Senhor” nas nossas próprias vidas, lutando incessantemente contra o pecado, através de uma maior disposição para a oração e mergulho na Palavra.

  …a Liturgia do Advento, conjugando a expectativa messiânica e a outra expectativa da segunda vinda gloriosa de Cristo, com a admirável memória da Mãe,…   …faz com que este período, como têm vindo a observar os cultores da Liturgia, deva ser considerado como um tempo particularmente adequado para o culto da Mãe do Senhor… (Paulo VI, Exortação Marialis Cultus, 02fev1974, n° 4)

Sinais exteriores:

A Coroa do Advento:

A Coroa de Advento não é antiga. Ela foi concebida em Hamburgo, há mais de cem anos. Havia muitas crianças órfãs naquela cidade portuária. Meninas e meninos sem teto que perambulavam pelas ruas pedindo esmolas.   Um Pastor luterano, Johann Heinrich Wichern (*1808 +1881) conseguiu que fosse construído um abrigo, um casarão, para abrigá-los e ensinar-lhes ofícios. Em 1833 nasceu a “Rauhes Haus” (Casa Rústica). E nessa Casa, aproveitando uma roda de carroça, o Pastor tratou de nela colocar velas correspondentes a cada dia, para preparar o Natal com a criançada.  Reuniam-se para cantar e ouvir a Escritura. Só anos mais tarde (1842) a roda começou a ser enfeitada com ramos de pinheiro (árvore que não perde a vida no inverno).

Atualmente é um símbolo acolhido pelos cristãos de todo o Ocidente, e o Livro das Bênçãos do CELAM acolheu uma bênção especial para a Coroa, que em Porto Alegre começou a ser utilizada na Paróquia do Rosário e dali foi para o Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, e veio também para a nossa Catedral, onde é celebrada já desde o século passado, como poderia ser conferido no Livro do Tombo.

A cor litúrgica:

Vestir um traje especial para realizar uma ação sagrada significa desvincular-se das dimensões usuais da vida cotidiana para entrar na presença de Deus na celebração dos divinos Mistérios, com referência simbólica ao ensinamento de São Paulo: «Porque todos vós, que fostes batizados no Cristo vos revestistes com o Cristo (Gal 3, 27)» (Congregação para as Igrejas Orientais. Instrução para a aplicação das prescrições li-túrgicas do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, de 6 de janeiro de 1996, n° 66).

E elemento importante na veste litúrgica é indubitavelmente a sua cor. 

As diferentes cores das vestes sagradas visam a manifestar externamente o caráter dos mistérios celebrados, e também a consciência de uma vida cristã que progride com o desenrolar do ano litúrgico. Há nessas cores um sentido místico (IGMR 2000-2002, n° 345). Elas constituem um símbolo que o cristianismo utiliza para tornar visível a significação espiritual da ocasião ou do tempo litúrgicos.

A cor prevista atualmente para o Tempo do Advento, é o roxo, que comporta muitos matizes, dependendo da proporção entre azul e vermelho,

Mas como o azul é uma cor ligada às festas da Virgem Maria, e assim foi  utilizado por muitos séculos na Espanha (embora só formalizado em 1864 dela Santa Sé), há comunidades que utilizam o azul para o Advento, em razão precisamente da acima apontada conexão do Advento com Maria. É interessante observar que o uso do azul nas festas marianas persiste em muitas comunidades tradicionais da Igreja Anglicana, especialmente na Inglaterra, sendo em algumas Igrejas da Comunhão Anglicana estendido a todo o Advento. 

O DIACONATO RESTAURADO NO BRASIL Alguns marcos da trajetória

Alexandre Henrique Gruszynski

Foi-me pedido que dissesse ou escrevesse alguma coisa sobre mim e sobre “os velhos tempos”, no Brasil, do Diaconato chamado “permanente”, que eu preferiria chamar de estável.

É que sou o sobrevivente dentre os quatro primeiros que, na América Latina, foram ordenados Diáconos sem a pretensão de virem a ser, adiante, ordenados presbíteros e, quiçá, bispos.

Esquecemos, muito frequentemente, que a Igreja nasceu no Oriente, nasceu Oriental, e só mais adiante, com a ida de São Pedro para Roma, e, por outro lado, com a presença do Império Romano no Oriente, veio a firmar-se também no Ocidente. A Igreja é nativamente Oriental, e no Oriente, de modo geral, nunca[1] deixou de ter, a par de bispos e presbíteros, também diáconos, ordenados para serem diáconos, na esteira do relato da instituição destes contido no Livro dos Atos dos Apóstolos. Cabe talvez lembrar que estes primeiros, embora se diga na Escritura que foram destinados ao serviço das mesas, logo adiante se vêem, no mesmo Livro, situações em que eles ensinam e batizam.

Embora se encontre, na Igreja Ocidental, especialmente na Romana, exemplos de diáconos que permaneceram diáconos e assim serviram a seus bispos (veja-se o caso de São Lourenço), mais adiante, por razões que não cabe no momento aqui analisar, surgiu a regra de que não mais se ordenassem diáconos senão aqueles que pretendessem adiante ser ordenados ao sacerdócio, contrariando a tradição das Igrejas Orientais.

Em meados do século passado livros e artigos publicados na Europa movimentaram alguns setores da Igreja do Ocidente no sentido da eliminação daquela regra que só admitia a ordenação ao diaconato de candidatos ao sacerdócio.

De Schamoni, em 1953, é o livro sugestivamente intitulado Pais de Família Ordenados Diáconos.[2] Josef Hornef retomou o assunto de vários artigos, que fora escrevendo sobre o tema, em obra intitulada Kommt der Diakon der fruehen Kirche wieder? publicado em tradução brasileira pela Editora Vozes em 1961[3].  Paul Winninger compareceu com um escrito na coletânea Présence Chrétienne,[4]publicado também separadamente.[5]

No Brasil, cabe mencionar o artigo do Frei Constantino Koser, OFM, publicado em 1959.[6]

Essas publicações, algumas ecoando escritos do século anterior, fizeram surgir muitas outras, notadamente artigos em Revistas, a respeito do tema, de modo que ele inevitavelmente surgiria no 2° Concílio do Vaticano, celebrado a partir de 1962,

O Concílio, provocado basicamente por um grupo de Bispos da região entre o Sudoeste da Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Norte da França (liderados pelo Cardeal Suenens), abordou o tema no documento sobre a Igreja, que em Latim começa com as palavras Lumen gentium, permitindo (n° 29) a restauração do diaconato como grau permanente da hierarquia na Igreja Latina, dependendo de decisão de cada Conferência de Bispos. E, na perspectiva abordada nos escritos antes mencionados, acessível também a homens maduros já casados.

Cabe considerar, para melhor visão dessa fase preparatória às primeiras ordenações, o que escreveram em 1966 os já mencionados Hornef e Winninger.[7]

Muito interessante também o artigo que pode ser encontrado através da Internet em:

https://www.dominicanajournal.org/wp-content/files/old-journal-archive/vol52/no3/dominicanav52n3deaconheparish.pdf


As Conferências de Bispos, que até então serviam para que os Bispos de um país ou de uma região apenas sintonizassem seus pontos de vista, passaram a ter, a partir do Concílio, poder deliberativo.

Os Bispos do Brasil aproveitavam a sua presença coletiva em Roma, por ocasião das sessões do Concílio, nos anos 1962-1965, para realizar as Assembleias Gerais da CNBB, e, assim, ainda em 1964, diante do estabelecido no n° 29 da Lumen gentium, decidiram que o diaconato seria restaurado no Brasil, como grau permanente da hierarquia, e acessível somente a casados. Tal decisão, quanto se saiba, foi regsitrada em Ata, mas não chegou a ser objeto de um ato formal.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil buscando, a partir do Concílio, tornar efetiva sua ação, organizou-se em Secretariados Regionais, compreendendo o Episcopado de um ou mais Estados integrantes da República.  Os Bispos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina constituíram, assim, o Regional Sul-3 da CNBB, que veio a ter sede em Porto Alegre.[9]

E os Bispos do Regional Sul-3 resolveram, diante da decisão do Episcopado Brasileiro adotada em Roma, organizar um Curso de Preparação para o Diaconato visando aos candidatos das correspondentes Dioceses.

Esse Curso foi planejado como Curso de Férias, em regime de dedicação total, em cinco etapas, sendo cada uma com 10 a 15 dias (nos meses de janeiro e de julho) e para ser realizado em Porto Alegre. Foi iniciado em janeiro de 1967. A primeira etapa foi na Vila Betânia, uma Casa de Retiros no Bairro Cascata, mas as seguintes não mais foram em Porto Alegre e sim em Viamão, no então Seminário. Os alunos eram 15, provenientes de várias Dioceses do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina; o Diretor do Curso foi o Rev. Luiz Colussi, da Diocese de Caxias do Sul (depois Bispo Diocesano de Lins, SP e de Caçador, SC).

Soube-se, na época, que também em Goiânia e em Salvador da Bahia foram, por essa época, instalados Cursos.

No que me concerne, fui convidado pelo então Bispo-Auxiliar de Porto Alegre, Dom José Ivo Lorscheiter, em carta de 1/1/1967, para fazer o Curso.  E o fiz, ainda que o tenha concluído depois da ordenação.

Cabe mencionar que, havendo ao tempo de aluno da PUC e, logo adiante, de Professor na Faculdade de Direito, vinha eu mantendo, desde o início da década de 1950, bastante atividade no contexto eclesial, especialmente na área da Liturgia; desde 1961 integrava a Comissão de Liturgia, Música e Arte Sacra da Arquidiocese e  atuava na Liturgia na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, em Porto Alegre, onde, aliás, continuei atuando, já como Diácono, até 1996, passando então a servir na Paróquia da Catedral, aliás minha Paróquia territorial desde 1961. Ademais, era professor de Direito Eclesiástico na Faculdade Direito da PUCRS desde 1956, e o fui até 2002. Tinha, assim, parece, um background adequado à ordenação.

Em 1968 deveria realizar-se em Bogotá, Colômbia, o 38° Congresso Eucarístico Internacional e na programação da semana fora previsto um dia para o Sacramento da Ordem. Em Bogotá (Diocese Primaz das Américas) estava sediado o Conselho Episcopal Latino-Americano, organização que congregava as Conferências de Bispos da América Latina, e que, como organismo eclesial, participou da organização do Congresso. Foi o CELAM que, sabedor da existência do Curso em Porto Alegre, indagou se não haveria candidato a diácono que pudesse ser ordenado na celebração integrante do Congresso, que teria a presidência do Papa, então Paulo VI. Sondado, aceitei o convite.

Nesse meio tempo, entretanto, o Papa editara em 18 de junho de 1967, o Motu proprio Sacrum Diaconatus Ordinem, onde ficou esclarecido, entre outras coisas, que a restauração, em cada âmbito territorial, do diaconato como grau estável, deveria ser formalizada em documento a ser submetido à aprovação do Sumo Pontífice.

A decisão do Episcopado Brasileiro, como dito acima, não chegara a constituir um documento formal, que pudesse ser submetido à aprovação da autoridade suprema da Igreja. Estava-se em julho de 1968, o Congresso em Bogotá seria em agosto. Não se sabia de iniciativa da CNBB em providenciar tal documento, de modo que  — a fim de que a situação pudesse ser regularizada —  urgia fazê-lo.  Foi assim que numa gélida noite de julho, no Seminário de Viamão, tratei, juntamente com o Diretor do Curso (Pe. Colussi) de redigir o necessário texto, a fim de ser ainda submetido ao plenário da CNBB (então reunido, como sempre nos meses de julho, no Rio de Janeiro). Na manhã seguinte fui ao Escritório da VARIG, no Centro de Porto Alegre, e sem maior problema um funcionário se dispôs a fazer entregar o texto, no mesmo dia, no local da reunião dos Bispos, a D. Vicente Scherer, então Arcebispo de Porto Alegre. O que foi feito. É bom lembrar que nem se imaginava Internet e a comunicação telefônica era extremamente precária.

O texto que preparamos foi aprovado pela Assembléia, com uma ressalva, feita de resto pelo próprio D. Vicente, que riscou a palavra desde e escreveu mesmo. É que se tinha notícia de que os Bispos, quando tomaram ainda em Roma a decisão de restaurar o diaconato no Brasil teriam decidido que seria somente para casados. O texto que eu escrevera e fora revisado pelo Pe. Colussi procurou manter essa decisão, mas a perspectiva em julho de 1968 foi outra: em vez de “desde que casados” ficou “mesmo que  casados”. 

De retorno do Rio de Janeiro Dom Vicente passou-me o original do texto que eu lhe remetera (com a sua emenda) e também aprovou que eu viesse a ser ordenado, e ordenado por outro Bispo que não ele, eis que estava eu vinculado à Arquidiocese de Porto Alegre, e a ordenação cabia portanto a ele (que, aliás, fora o Pároco da minha infância e adolescência).

Cabe lembrar, ainda, que outro aluno de nosso Curso de Porto Alegre, Vitorio Fontana, da Diocese de Santa Maria, também esteve por aceitar a ordenação em Bogotá, mas, por motivos de que não cheguei a tomar conhecimento, desistiu, sendo mais tarde ordenado em Santa Maria.  

Como era de lei à época, recebi, entre dez e oito dias antes da viagem a Bogotá, as chamadas ordens menores e o subdiaconato.

Os dias que precederam a viagem a Bogotá foram um tanto agitados, na época viajava-se menos pelo mundo…   Por outro lado recebi, em meu pequeno apartamento onde então morava, entre outros, um grupo da RAI (Rádio e Televisão Italiana) que realizou uma entrevista comigo, e o Rev. René Laurentin, sediado em Paris (e que fora Perito no Concílio, onde fiacara amigo de D. Vicente), sendo que este publicou depois uma reportagem no Le Figaro, de Paris, exatamente no dia da ordenação (22 de agosto). Na reportagem não deixou de mencionar o fato de eu ser casado com uma Assistente Social e Luterana…  

Acompanharam-me na viagem a Bogotá minha mãe Emília e minha mulher, Cecy; nossos filhos, então dois, ficaram em São Paulo, com a família de uma irmã da Cecy. Em Bogotá ficamos hospedados em uma Paróquia (Sagrado Coração); seu Pároco era também o Cerimoniário Litúrgico do Congresso…

Só lá em Bogotá fiquei sabendo que seríamos quatro, todos brasileiros, um de Jataí (GO) e dois de Salvador (BA), os que iríamos ser ordenados ao diaconato para continuarmos diáconos, isso ao lado de outros 37 que eram candidatos ao sacerdócio. E cerca de 150 diáconos iriam, na mesma celebração, ser ordenados presbíteros.

Fomos, assim, os quatro, os primeiros diáconos estáveis da América Latina, sendo eu, agora, o  único sobrevivente. Antes de nós, na Diocese de Colônia, tinham sido ordenados (abril de 1968) os primeiros da Europa. Em contato com essa Diocese, na época em que iriam transcorrer os 50 anos de nossa ordenação em Bogotá, fui informado de que nenhum daqueles de Colônia continuava em atividade. E, como escrevi acima, também os outros três brasileiros não mais vivem.

Minhas atividades ligadas ao Diaconato não se afastaram das linhas em que vinha tratando de servir à Igreja, conquanto, assim o creio, a partir daí fortalecido pela graça do Sacramento.  Na área do Direito Canônico participei de numerosos Congressos e Encontros, nacionais e internacionais, ligados à área. Sou co-fundador (1986) da Sociedade Brasileira de Canonistas (iniciativa do Pe. Jesus Hortal, S.I., então Professor da UNISINOS e depois Reitor da PUCRJ) e dela fui Presidente por um biênio (1999-2001), sendo também membro da Société Internationale de Droit Canonique et de Legislations Religieuses, com sede em Paris.  E, principalmente na fase inicial da renovação litúrgica consequente ao Concílio, tive signifiativa participação nas tarefas correspondentes, tanto no nível arquidiocesano como no do Regional Sul-3 da CNBB. Participei também com minha mulher, em Roma e no Vaticano, das celebrações dedicadas aos Diáconos no Jubileu 2000.  

Atualmente, estando aposentado como Procurador do Estado, cargo para que fui nomeado, após concurso, em 1964, e também (pelo INSS) como Professor (que fui, por 46 anos) da PUCRS, permaneço como Juiz do Tribunal Eclesiástico de Porto Alegre (desde 1987, tendo atuado como Advogado junto ao Tribunal desde 1974) e atuo na Liturgia na Catedral Metropolitana de Porto Alegre, inclusive na celebração diária da Missa vespertina e na das Vésperas cantadas em dois dias da semana (ora, porém, estou em reclusão domiciliar por motivo da Covid-19…).

Aos que se interessarem por outras informações que me digam respeito posso indicar a busca pelo meu Currículo Lattes

(http://lattes.cnpq.br/5585984543756574)

e o acesso a meu blog

(www.liturgiaedireito.wordpress.com).

Aos Colegas a quem cabe o canto do Exsultet na noite da Páscoa posso sugerir que vejam no YouTube a gravação que alguém (não sei quem…) fez e postou há alguns anos atrás:

https://www.youtube.com/watch?v=Opdfa80Bw50

Quando da comemoração de 35 anos de minha ordenação preparei com a ajuda de minha filha Ana Cláudia, um grande painel com fotos e reproduções de publicações e documentos, que ficou exposto na Sacristia da Catedral e que depois transformei em uma apresentação do PowerPoint.

Os alunos do primeiro Curso de Preparação para o Diaconato, na “Vila Betânia”, em Porto Alegre, por ocasião da visita do Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre. Presente na foto também o Diretor do Curso, Rev. Luiz Colussi.


[1] Em algumas das Igrejas Orientais, possivelmente por influência da Igreja Latina, ocorreu uma certa decadência, a que se contrapôs o 2° Concílio do Vaticano através do documento Orientalium Ecclesiarum:  Para que a antiga disciplina do Sacramento da Ordem vigore novamente nas Igrejas Orientais, deseja este sagrado Concílio que a instituição do diaconado permanente seja restaurada onde caiu em desuso.

[2] SCHAMONI, Wilhelm. Familienvaeter als geweihte Diakone? Paderborn, 1953.

[3] HORNEF, Josef. Voltará o Diácono da Igreja Primitiva? Petrópolis, RJ. Editora Vozes Limitada. 1961

[4] WINNINGER, Paul. Vers un renouveau du diaconat, in: Présence Chrétienne, Paris, 1958.

[5] WINNINGER, Paul. Vers un renouveau du diaconat, Paris, Desclée de Brouwer, 1958, 214 p.

[6] KOSER, OFM, Constantino. Diáconos Profissionais na Igreja do Século XX?  in: Revista Eclesiástica Brasileira, set. 1959. Petrópolis, RJ. Editora Vozes Limitada.

[7] HORNEF, J. et  WINNINGER, P. Chronique de la restauration du diaconat (1945-1965)  in: WINNINGER, Paul, et  CONGAR, Yves (eds), Le Diacre dans l’Eglise, Paris. Cerf, 1966, pp. 205-222.

[8] DUMONS, Bruno et MOULINET, Daniel. Le Diaconat Permanent – Relectures et Perspectives. Paris. Cerf. 2007.  

[9] Mais tarde os de Santa Catarina se desligaram do Sul-3 e constituíram o Sul-4.

A DATA DA PÁSCOA E DAS DEMAIS FESTAS CRISTÃS CHAMADAS «MÓVEIS»

Alexandre Henrique Gruszynski

O centro de toda a perspectiva cristã é a Páscoa, o Mistério Pascal: morte e ressurreição do Cristo. Toda a Liturgia, assim, tem na Páscoa a sua centralidade.

A Escritura menciona que os acontecimentos da morte e ressurreição de Jesus ocorreram em torno à Páscoa dos israelitas. Assim consta nos Evangelhos.

O calendário que os israelitas usavam e usam (também os islâmicos o usam, até hoje) era o calendário lunar (baseado nas fases da lua), corrigido periodicamente (para os israelitas) pelo acréscimo de um mês para ajustar-se ao calendário solar, sendo este o baseado na rotação da terra em redor do sol.

A Páscoa (Páscoa significa passagem) dos israelitas comemorava cada ano a passagem do Anjo Exterminador por cima das casas dos israelitas (enquanto feria de morte os primogênitos dos egípcios). Essa passagem ocorreu na noite da partida rumo à Terra Prometida com a passagem do Mar Vermelho. 

Os primeiros cristãos celebravam a morte e a ressurreição de Jesus anualmente na época em que havia ocorrido, considerando que a morte e a ressurreição eram a verdadeira PASSAGEM (=Páscoa), isto é: do pecado e da morte para a vida verdadeira. 

Conforme se vê no Capítulo 12 do Livro do Êxodo, essa celebração anual deveria ocorrer no mês de Nissan, o primeiro dos meses, começando no 10° dia e culminando com a ceia pascal no 14° dia.  Não se vê daí que Nissan correspondesse ao início da Primavera, mas pelo Capítulo 23 do Livro Levítico vê-se que seria na época da colheita.    

O mês (lunar) começava com a lua nova (por isso ela se chama de nova…), de modo que no 14° dia se estava na lua cheia. Por isso a nossa Páscoa também é sempre com a lua cheia.

Cedo surgiram várias divergências na Igreja a respeito da fixação da data, embora já se tivesse firmado a comemoração semanal da Páscoa no dia do Sol [Sunday; Sonntag]. Nas línguas latinas esse Dia do Sol depois foi chamado de Domingo, o Dia do Dominus, o Dia do Senhor). Daí que muitos quisessem que a comemoração anual coincidisse com um Domingo.

Atribui-se ao Concílio de Nicéia (ano 325) uma decisão fixando o dia da Páscoa anual nos seguintes termos: A Páscoa é celebrada no domingo que segue o décimo-quarto dia da Lua que atinge essa «idade» a 21 de março ou imediatamente depois.

O dia 21 de março é, em princípio, o dia do Equinócio da Primavera (o início da Primavera no hemisfério norte, onde tudo se passava). Com as reformas para acertar o calendário, e dependendo do meridiano em que a pessoa se encontre, nem sempre esse Equinócio ocorre no dia 21, pode ser 22.

A Páscoa, pois, é no domingo da 1ª lua-cheia da Primavera (no hemisfério norte).

A partir desses elementos fizeram-se cálculos e cálculos para compatibilizar o calendário solar, que usamos no Ocidente, com o calendário lunar, de modo a prever esse 14° dia da Lua, e o domingo seguinte, após o Equinócio de março. Temos aí a data da PÁSCOA. Nos Missais anteriores à reforma introduzida em 1970 encontra-se, logo no início, a descrição da forma desses cálculos, sob o título De Anno et Eius Partibus.

A QUARTA-FEIRA DAS CINZAS, início da Quaresma, é quarenta dias (de jejum) antes da Páscoa; como os domingos, por serem Dia do Senhor, nunca são de jejum, eles são descontados dos 40. A palavra Quaresma provém do latim quadragésima, ou seja, o quadragésimo dia antes da Páscoa,

A ASCENSÃO é, para a Igreja Latina, 40 dias depois da Ressurreição (no Brasil é protelada da 5ª. feira para o domingo seguinte).

PENTECOSTES é 50 dias depois da Páscoa. Pentecostes é palavra grega que significa cinqüentena, por serem 50 dias os que medeiam entre a Páscoa e tal festa (aliás já celebrada, também, pelos israelitas, sete semanas após a Páscoa).  

CARNAVAL não é uma festa cristã, mas corresponde às comilanças e festanças de «despedida» antes de começar a quaresma. 

(Este texto foi escrito em 2008 com vista à Equipe de Liturgia da Catedral Metropolitana de Porto Alegre, integrantes da qual questionavam Por que este ano o Carnaval é tão cedo?)

COISA JULGADA, RESTITUTIO IN INTEGRUM, NOVA CAUSÆ PROPOSITIO

Nota preliminar: Este texto é o Roteiro para a aula correspondente no Curso de Aperfeiçoamento (pós-graduação lato sensu) em Processo Canônico de Nulidade de Matrimônio, realizado pela Faculdade de Direito da PUCRS em 2001-2003.  

COISA JULGADA – NOÇÃO, JUSTIFICAÇÃO

A expressão res iudicata, em francês chose jugée, em italiano cosa giudicata, é traduzida na linguagem jurídica brasileira por coisa julgada, mas na lusitana por caso julgado.

Chama-se de coisa julgada a ocorrência de algo decidido por sentença judiciária irrevogável. Não absolutamente irrevogável, mas ordinariamente irrevogável, isto é, revogável só por vias extraordinárias. Em outras palavras, o julgamento que não pode ser atacado pela via ordinária da apelação, ou: a sentença definitiva que não é suscetível de apelação.

Justifica-se porque o bem público exige que os processos terminem, exige que os direitos não possam ser perpetuamente questionados perante os tribunais; é necessária uma estabilidade não só na legislação, mas também nas relações concretas entre as pessoas.

O instituto da coisa julgada chegou ao direito canônico por via do direito de Justiniano: Res iudicata pro veritate habetur et finem imponit controversiae.

Há, entretanto, decisões que, embora definitivas e não suscetíveis de apelação, não passam em julgado (é esta a expressão verbal para dizer que chegam a coisa julgada), por expressa exceção legal: são as causas referentes ao estado das pessoas, cf. o Cân. 1643.

Poderíamos até deixar de lado essa matéria, portanto, porque o nosso Curso é sobre processos que não levam a coisa julgada. Mas é importante ter uma visão ao menos global do assunto, ao qual está ligada indissoluvelmente a restitutio in integrum e a correspondente nova causae propositio, esta sim cabível nas causas referentes à nulidade de matrimônio.

QUANDO HÁ COISA JULGADA?

Vamos à regra legal básica, que se encontra no Cân. 1641:

Cân. 1641 – Salva a prescrição do Cân.1643, há coisa julgada:

1o. – se tiverem sido dadas duas sentenças concordes entre as mesmas partes, sobre o mesmo pedido e pela mesma causa de demanda;

2o. – se a apelação contra a sentença não tiver sido apresentada dentro do tempo útil;

3o. – se, em grau de apelação, a instância se tiver tornado perempta ou  tiver havido renúncia a ela;

4o. – se tiver sido proferida sentença definitiva, contra a qual, de acordo com o Cân. 1629,  não se admite apelação.

São, portanto, quatro hipóteses.

Na primeira, observe-se, devem concorrer quatro requisitos: 1. tenha sido dada uma dupla sentença conforme, 2. numa causa entre as mesmas partes, 3. sobre o mesmo pedido e 4. e pelo mesmo fundamento (causa petendi).

A segunda hipótese pode resultar de duas situações diferentes: 1. não foi proposta apelação no prazo legal, que é de quinze dias da publicação da sentença (Cân. 1630, § 1), ou 2. a apelação foi proposta, mas depois deixada deserta, ou seja, não foi «prosseguida» no tribunal de apelação (Cân. 1633-1635). 

A terceira hipótese ocorre quando, no grau de apelação, ocorreu 1. a perempção da instância (Cân. 1520-1521) ou 2. a renúncia à instância (Cân. 1524 e 1636).    

 A quarta hipótese refere-se às sentenças definitivas[1] não suscetíveis de apelação, como sejam as proferidas pelo Papa pessoalmente ou pelo Tribunal da Assinatura Apostólica, aquelas que já passaram em julgado, aquelas dadas em questões que a lei determina deverem ser julgadas expeditissime, etc., conforme Cân. 1629.  

EFEITOS DA COISA JULGADA

Leiamos primeiro o texto legal, que é o Cân. 1642:

Cân. 1642 – § 1. A coisa julgada tem estabilidade de direito e não pode ser impugnada diretamente, a não ser de acordo com o Cân. 1645, § 1.

§ 2. Ela faz direito entre as partes e proporciona ação de julgado e exceção de coisa julgada, que o juiz pode declarar também ex officio, para impedir nova introdução da mesma causa.

Logo se vê que os efeitos que resultam da ocorrência da coisa julgada são de duas ordens: formal e material.

O efeito formal consiste na presunção legal de veracidade e da justiça do que foi estabelecido na decisão judicial. É uma presunção iuris et de iure, embora possa ser atacada indiretamente,[2] e possa excepcionalmente ser  pleiteada a restitutio in integrum, quando a injustiça da coisa julgada é clara e evidentemente provada. Mas o que foi decidido e transitou em julgado goza da firmitas iuris.

O efeito substancial consiste na eficácia jurídica que a sentença tem, entre as partes, eficácia essa que por sua vez produz 1. um efeito constitutivo, que é a ação do  favorecido pela sentença para pô-la em prática (a execução da sentença, como se diz no processo brasileiro) e 2. um efeito preclusivo, que é a exceção de coisa julgada, com a qual se impede a reintrodução da mesma causa (Cân. 1462, § 1 e 2), exceção essa que pode ser apresentada até pelo próprio Juiz. Relembre-se que tal exceção só tem cabimento quando a nova causa tenha as mesmas partes, o mesmo objeto e a mesma razão de pedir.

A RESTITUTIO IN INTEGRUM

NOÇÃO, JUSTIFICAÇÃO

A restitutio in integrum  é uma medida jurídica destinada a reparar lesões graves que resultem de atos válidos mas rescindíveis; pretende restabelecer os interessados na situação jurídica em que se encontravam antes do ato que trouxe prejuízo a seus direitos.  É uma reintegração nos direitos anteriormente titulados.

Aqui, no processo, trata-se da aplicação, à coisa julgada, desse instituto jurídico, que tem como efeito repor as partes na situação em que se encontravam antes da coisa julgada.

É uma via de recurso excepcional, só admissível quando, não havendo possibilidade de apelação nem de querela de nulidade, há um evidente conflito entre certeza e justiça formais e a justiça real, devendo esta última prevalecer sobre aquela.

Corresponde, em linhas gerais, à ação rescisória do processo civil brasileiro.

APLICABILIDADE

Como a restitutio in integrum é dirigida unicamente contra coisa julgada, não cabe diante de decisões que jamais passam a coisa julgada, como o são as referentes ao estado das pessoas, e, portanto, as de nulidade matrimonial.

A lei é bastante explícita sobre a matéria. Veja-se o Cân. 1645:

Cân. 1645 – § 1. Contra sentença que tenha passado em julgado, contanto que conste manifestamente de sua injustiça, dá-se a restitutio in integrum.

§ 2. Não se considera que conste manifestamente da injustiça a não ser que:

1o. a sentença se baseie de tal modo em provas que depois se descubra serem falsas, que, sem elas, a parte dispositiva de tal sentença não se possa sustentar;

2o. tenham sido descobertos posteriormente documentos que provem fatos novos e exijam indubitavelmente uma decisão contrária;

3o. a sentença tenha sido proferida por dolo de uma parte em prejuízo da outra;

4o. tenha sido evidentemente negligenciada alguma prescrição, não meramente processual, da lei;

5o. a sentença se oponha a uma decisão anterior que tenha passado em julgado.

Esquematizando um pouco o texto legal, vemos que há dois requisitos básicos para pleitear-se a restitutio in integrum: 1. que a decisão impugnada tenha transitado em julgado e 2. que ou se prove desde logo que a mesma decisão foi manifestamente injusta ou que de tal injustiça se forneça um fundamento a ser comprovado, a seguir, no processo.

Essa «manifesta injustiça» o legislador definiu como ocorrente em cinco casos, que são os nos. do § 2 do Cân. 1645. Como a restitutio in integrum é um recurso extraordinário, o balizamento é bastante estrito, e, nesses diversos números, há adjetivos, mas principalmente advérbios, que não podem ser desconsiderados.

A QUEM E ATÉ QUANDO SE PLEITEIA

A quem, e até quando, se pode pleitear a restitutio in integrum, depende da causa de pedir.

Porque, de acordo com o Cân. 1646, § 1,

– se o motivo é um dos três primeiros enunciados no Cân. 1645, § 2, (que configuram uma situação de direito) deve ser impetrada 1. perante o Juiz da causa que prolatou a sentença e 2. dentro de três meses do dia em que a parte tomou conhecimento de tal motivo;

– se o motivo é o 4º ou 5º dos enunciados no mesmo Cân. 1645, § 2, (que configuram uma situação de fato) deve ser impetrada 1. perante o tribunal de apelação 2. dentro de três meses de ter tido conhecimento da publicação da sentença, a não ser que, no caso do nº 5º, o conhecimento da decisão precedente se tenha dado depois, caso em que os três meses se contam da ciência dessa decisão precedente.

Mas esses prazos não correm enquanto o lesado for menor de idade, diz o § 3 do mesmo Cân. 1646.

EFEITOS DA RESTITUTIO IN INTEGRUM

A simples impetração da restitutio in integrum já tem ou pode ter efeito.

Porque se a execução da sentença que se procura impugnar ainda não foi iniciada, ela em regra nem se inicia.  Mas o Juiz que, por indícios prováveis, suspeite de que a impetração da restitutio in integrum se tenha dado com o objetivo de retardar a execução, pode determinar que a tal sentença se execute, mas apenas depois de ter proporcionado, a quem impetrou a restitutio in integrum, uma adequada garantia (caução) de indenização caso venha a ser concedida a restitutio in integrum.

Concedida a restitutio in integrum, tudo deve voltar ao status anterior: não há mais coisa julgada, devem ser restituídos os bens ou outros objetos recebidos em virtude do julgamento, deve-se permitir o exercício do direito negado pelo julgamento, etc., até que um novo julgamento decida sobre a matéria.

Esse novo julgamento, sobre o mérito da causa, quem deve realizá-lo é o Juiz que concedeu a restitutio in integrum.

É o que se vê dos Cân. 1647 e 1648.

A «FIRMEZA DA DECISÃO», NAS CAUSAS REFERENTES AO ESTADO DAS PESSOAS

A estabilidade das situações jurídicas decorrente da certeza em que se encontram as partes (e a comunidade) após a ocorrência da coisa julgada não surgiria jamais em relação precisamente ao estado das pessoas, uma vez que, segundo a legislação canônica vigente, como se viu, decisões nessa matéria jamais passam em julgado.

Não passarem em julgado tais decisões é uma exceção, fundada na salus animarum e no perigo de pecado. A observância de uma sentença injusta, em tal matéria, seria ocasião (se não causa) de pecado; seria contrária ao objetivo último da Igreja, que é a salvação das almas.

Mas, por outra parte, os juristas tiveram de encontrar um modo de permitir que tais decisões judiciais, embora não dotadas da qualidade de coisa julgada, fossem postas em prática.

Essa é a perspectiva das normas legais que estabelecem o que se chama de «firmeza de direito», que é uma quase-coisa-julgada, e que ocorre, nas causas de nulidade matrimonial, quando uma sentença favorável à nulidade é confirmada por outra sentença (ou por decreto, quando assim previsto) no mesmo sentido.[3] 

Porque, como determina o Cân. 1684, § 1,

Depois que a sentença que por primeiro[4] declarou a nulidade do matrimônio foi confirmada em grau de apelação ou por decreto ou por segunda sentença, aqueles cujo matrimônio foi declarado nulo podem contrair novas núpcias logo que lhes tiver sido notificado o decreto ou a segunda sentença, a não ser que isso lhes seja ou vedado por proibição aposta à própria sentença ou decreto, ou estabelecido pelo Ordinário local.[5]

 Na prática, pois, sob o aspecto de exeqüibilidade, estamos na mesma situação da coisa julgada.

Mas e se a sentença foi injusta, incorreta? A observância de uma sentença injusta, em tal matéria, repito, seria ocasião, ou até causa, de pecado; seria contrária ao objetivo último da Igreja, que é a salvação das almas.

Entretanto, como não cabe restitutio in integrum, porque não há coisa julgada, também foi necessário encontrar uma outra saída, e esta é a nova causæ  propositio.

A NOVA CAUSÆ PROPOSITIO[6]

NOÇÃO, JUSTIFICAÇÃO

Embora a expressão nova causæ propositio não seja tão antiga, já no impropriamente chamado «Decreto» de Graciano (séc. XII) o problema está colocado na causa XXXV, quaestio IX: …quaeritur, si Ecclesia fraude testium, aut ignorantia eorum decepta aliquos separaverit, qui post separationem alia coniugia contraxerint, si postea deprehensa fuerit calliditas vel falsa opinio testium, an propria conjugia sint redintegranda. E responde Graciano: Aliud est sententiam rescindere et rationabiliter decisa turbare, atque aliud quae per surreptionem eveniunt deprehensa corrigere.

E por aí foi se firmando, esclarecendo, complementando mesmo, a possibilidade de propor-se a revisão da sentença injusta, ou infundada, em matéria de nulidade matrimonial. A Dei miseratione, de Bento XIV (3.11.1741) trata do assunto; a seguir duas Instruções de Congregações Romanas de 1883, e se chega ao Código de 1917, onde ela aparece em dois Cânones, que dizem o seguinte:

Cân. 1903. Nunca passam em julgado as causas sobre estado das pessoas; mas duas sentenças conformes nestas causas fazem que não deva admitir-se uma nova proposição a não ser que se aduzam novas e graves razões ou documentos.

Cân. 1989. Como as sentenças em causas matrimoniais nunca transitam em julgado, as mesmas causas poderão, a qualquer tempo, ser tratadas de novo, se se apresentam novas provas, mantido o que prescreve o Cân. 1903.

A Instrução Provida Mater,[7] de 1936, regulamentou o Cân. 1989 (art. 217) e a codificação provisória do Direito das Igrejas Orientais na parte relativa aos processos (1950), incorporou explicitamente o princípio audiatur et altera pars. Antes de chegarmos ao Código de 1983 vigente para a Igreja Latina ainda tivemos o Motu proprio Causas Matrimoniales (de 1971), que no art. IX tratou da matéria.

GULLO, Carlo, em artigo publicado na Coletânea Il processo matrimoniale canonico, LEV, 1988, expõe muito bem o porquê do instituto:

La «ratio» dell’istituto come strutturato giuridicamente oggi, è ancora la stessa di quella che lo contraddistinse alle sue origini; se è vero infatti che, dopo una doppia sentenza conforme, la decisione si presume giusta e vera e di conseguenza non deve facilmente concedersi il nuovo esame, ché altrimenti le cause possono diventare immortali con grave danno sociale per l’incertezza dello status personale dei contraenti e dei diritti e degli obblighi che in questo trovino la loro radice, è altrettanto vero che il bene delle anime e la «ratio peccati» nelle cause matrimoniali proibisce che sia mandata ad esecuzione una sentenza che, se pur si presume giusta, tale non sia. (pág. 369)

A LEGISLAÇÃO VIGENTE

Para não nos demorarmos demais no assunto, vejamos, um tanto dogmaticamente alguns pontos cujo aprofundamento por via de discussão seria muito interessante, mas que aqui nos levaria a não tratarmos de nenhum outro assunto mais.

Quais as normas vigentes? Onde estão? É uma impugnação?

No Código de 1983 a matéria está disciplinada no Cân. 1644:

Cân. 1644 – § 1. Se tiverem sido pronunciadas duas sentenças concordes em causa referente ao estado das pessoas, em qualquer tempo se pode recorrer ao tribunal de apelação, apresentando novas e graves provas ou argumentos dentro do prazo peremptório de trinta dias desde a proposição da impugnação. O tribunal de apelação, porém, dentro do prazo de um mês desde a apresentação das novas provas e argumentos, deve decidir, por decreto, se a nova propositura da causa deve ou não ser admitida.

§ 2. O recurso ao tribunal superior, para a obtenção de uma nova propositura da causa, não suspende a execução da sentença, a não ser que a lei determine o contrário ou o tribunal de apelação ordene a suspensão, de acordo com o Cân. 1650, § 3.

Em primeiro lugar uma observação: a nova causae propositio não vem tratada em um título independente; encontra-se no Título IX, epigrafado «Da coisa julgada e da restitutio in integrum» e, dentro desse Título IX, no Capítulo I, intitulado «Da coisa julgada». Não se encontra no Título VIII, que leva como cabeçalho «Da impugnação da sentença», e que compreende só dois Capítulos: Querela de nulidade e Apelação.  A nova causae propositio não é, pois, uma impugnação, poder-se-ia rapidamente concluir.  Só que é, não só pela sua própria natureza, mas até porque o mesmo Código diz, de passagem, que é. Veja-se no fim da primeira sentença do § 1 do Cân. 1644, que usa exatamente a palavra impugnação.

Difere dos outros meios.

1. Da apelação porque pode propor-se a qualquer tempo, não suspende (necessariamente) a executividade da decisão «firme», propõe-se contra uma decisão «dupla conforme» e exigem-se novos e graves argumentos, enquanto a apelação deve ser proposta em quinze dias, suspende a executividade da decisão e não necessita de argumentos graves e novos.

2. Da querela de nulidade porque presume a validade da sentença, e a querela de nulidade, presume exatamente a nulidade da sentença.

3. Da restitutio in integrum porque esta só se aplica a causas passadas em julgado, e a nova causae propositio às que nunca passam; esta não está sujeita a limite de tempo para proposição, aquela sim, a prazos peremptórios.

Quem pode propor?

O Cân. 1644 não explicita, e por isso há de se buscar a resposta nos princípios gerais referentes ao processo canônico, a partir dos quais se chegará à legitimação dos cônjuges, do Promotor de Justiça e, naturalmente, do Defensor do Vínculo, que se equipara, no processo, às partes.

Ambos os cônjuges? Sem dúvida o cônjuge que «perdeu» a causa, o sucumbente como se costuma dizer. Mas diante da legislação vigente também o «ganhador» do processo. Tanto o que pediu e obteve, ou não, a sentença de nulidade, como o demandado, desde, naturalmente que tenham capacidade para «estar em juízo»; se não, terão de fazê-lo mediante curador.

Defensor do Vínculo e Promotor de Justiça, mas qual? O Defensor que atualmente esteja atuando no Tribunal cuja decisão vai ser impugnada, mas também o que esteja atuando no Tribunal perante o qual se vai dar a impugnação. Não se trata de algo pessoal, referente ao Defensor que atuou na causa, nem tampouco de algo que diga respeito ao local onde poderia ter corrido o processo em qualquer das instâncias. O mesmo se diga do Promotor de Justiça. Mas é claro que o Defensor do Vínculo só pode impugnar uma decisão que tenha sido pela nulidade, o que não ocorre com o Promotor, que deve promover a justiça.

Nada impede que outras pessoas denunciem ao Promotor de Justiça ou ao Defensor do Vínculo motivos que poderiam levar à impugnação.

GULLO (op. cit., pág. 375/376) defende, ademais, que poderia haver intervenção de terceiro na nova causae propositio, sempre que se comprovasse um interesse legítimo, e que esse terceiro até devesse ser desde logo citado, se conhecido de antemão seu interesse. Refere-se especialmente à hipótese de A, tendo tido declarado nulo com dupla conforme seu matrimônio com B, haver casado com C. Se A ou o Defensor do Vínculo (ou o Promotor de Justiça) ingressam e vêem admitida a nova causae propositio, visando a derrubar a decisão pela nulidade do matrimônio entre A e B, é evidente o interesse de C.

Qual é o Tribunal competente?

É o Tribunal de Apelação, diz a lei. Como haverá já duas decisões, normalmente se tratará da Rota Romana. Mas excepcionalmente pode ser outro Tribunal (Rota da Espanha, Tribunal ao qual por especial concessão se tenha dado competência como de 3º grau, …).

Requisitos para que possa ser obtida

1. que tenha havido uma dupla sentença conforme, em causa referente a estado das pessoas, notando-se que o decreto de homologação da primeira sentença pela nulidade, equipara-se a uma sentença, para tal efeito (Cân. 1684, § 2). É importante ter em conta o que a doutrina e a jurisprudência já vinham proclamando e que ficou expresso na Instrução Dignitas connubii Consideram-se equivalentemente ou substancialmente concordes as decisões que, conquanto designem e determinem o capítulo de nulidade com denominação diversa, fundamentem-se, todavia, sobre os mesmos fatos nulificantes e sobre as mesmas provas. Ressalvado o que dispõe[8] o art. 136 e respeitado o direito de defesa, conhece da conformidade equivalente ou substancial entre duas decisões o tribunal de apelação que exarou a segunda ou o tribunal superior (art. 291, §§ 2 e 3). Assim, embora haja discrepância entre a «fórmula de dúvidas» entre uma e outra instância, poderão as decisões ser consideradas conformes entre elas se fundadas nos mesmos fatos e correspondentes provas.   

2. que se disponha de novas e graves provas ou argumentos, a serem apresentados dentro de trinta dias do pedido (por exemplo: a parte se retrata da confissão; uma testemunha produz um documento dizendo que mentiu sobre um ponto essencial; aparece uma testemunha que não havia sido localizada e que dispõe de elementos importantes; descobre-se um documento; o Colegiado cometeu um evidente erro de direito; houve um grave vício de procedimento, etc.); há autores e jurisprudência tanto no sentido de que o prazo de trinta dias é peremptório como no sentido de que não é, desde que o Juiz admita ainda depois, evitando assim que a parte tenha de entrar com novo pedido. Também aqui a Dignitas connubii traz significativo esclarecimento: Não é necessário que as novas razões ou provas a que se refere o art. 290, § 1[9] sejam gravíssimas e muito menos que sejam resolutivas, isto é, que exijam peremptoriamente uma decisão contrária, mas basta que a tornem provável. Não bastam, porém, meras censuras e observações críticas a respeito das decisões proferidas (art. 292, §§ 1 e 2).  

Efeitos da apresentação do pedido

A simples apresentação do pedido de admissão a novo exame em regra não suspende a execução da sentença (ao contrario da restitutio in integrum), a não ser que a lei determine o contrário (na legislação universal não há qualquer dispositivo)  ou o tribunal assim desde logo o decida, se vir que o pedido provavelmente é fundado e que da execução poderá resultar grave dano (cf. Cân. 1644, § 2, combinado com o Cân. 1650, § 3; Dignitas connubii, art. 294).

Ademais, dentro do prazo de um mês da apresentação das provas ou argumentos o Tribunal deve decidir se admite ou não o reexame da causa.

A tramitação

A maior parte da doutrina inclinava-se a afirmar que o Juiz pode decidir sobre o pedido independentemente de ouvir alguém. Mas há quem, como GULLO (op. cit., pág. 380/382) que terminantemente procurou convencer  que a audiência da outra parte, ou das outras partes, é indispensável, antes da decisão.

A posição de GULLO prevaleceu ao ser editada a Dignitas connubii, que no art. 293, § 1, determina seja ouvido o Defensor do Vínculo e intimada a outra parte; esta, intimada, evidentemente poderá manifestar seu ponto de vista.

Apresentados, pois, os argumentos ou provas (e ouvidas as outras partes, às quais deve ser dada oportunidade de relevarem, querendo, os argumentos), o Tribunal deve decidir se as novas provas apresentadas (ou os argumentos) são suficientemente graves para tornar provável a revisão da «dupla decisão conforme», ou não.

Se o novo exame é concedido, o Tribunal pode (se isso já não foi feito antes) decidir se determina a suspensão da execução da sentença. Parece que deva fazê-lo sempre que alguma das duas partes liberadas para casar ainda não o tenha feito, e isso por razões óbvias. 

Recursos

Da decisão da Rota Romana que negar novo exame cabe apelação ao Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica (Cân. 1445, § 1, nº 2).

Se a decisão, excepcionalmente, tiver sido de um Tribunal que por especial concessão atue em 3ª instância (que não a Rota da Espanha), o recurso é para a Rota Romana.

Já da decisão que admite novo exame da causa não cabe apelação, porque essa admissão não implica em nenhuma consideração de mérito, segundo a jurisprudência da Rota. Está certo?

Por fim, há de lembrar-se que nada impede um segundo pedido de nova causae propositio, contanto que outros sejam os argumentos ou provas, novos e graves, que se apresentem, diversos daqueles indicados na primeira tentativa.-

NOTA COMPLEMENTAR:

A superveniência das Normas editadas mediante o Motu Proprio «Mitis Iudex Dominus Iesus» alterou em vários pontos a disciplina jurídica referida no texto supra., especialmente quando se trate de causas relativas à nulidade de matrimônio.

Assim, não mais é exigida a ocorrência de uma segunda sentença, conforme à primeira, pela nulidade de um matrimônio, para que essa se torne executiva, sem prejuízo do direito à apelação da parte que se considere agravada, ou do Defensor do Vínculo, ou do Promotor de Justiça.[10]    

E o Cân. 1681, na nova redação, prevê que Se foi emitida uma sentença executiva pode-se recorrer, em qualquer momento, ao Tribunal de terceiro grau para uma nova proposição da causa nos termos do Cân. 1644, aduzindo-se, dentro do prazo peremptório de trinta dias a partir da apresentação da impugnação, novas e ponderosas provas ou argumentos, dentro do prazo peremptório de trinta dias a partir da apresentação da impugnação.


[1] como já apontado anteriormente, «definitiva» se opõe a «interlocutória»; não significa, em si, imutável.

[2] provando que não ocorreram os alegadamente dois julgamentos concordes, ou que um deles (ou o único, quando tivesse bastado) ou ambos, são nulos, …

[3] Por exceção, a «firmeza da decisão» nos processos meramente documentais (Cân. 1686/1688), decorre já da primeira decisão não apelada.

[4] A tradução brasileira da Ed. Loyola não corresponde ao que estabelece o texto original, uma vez que fala em primeira instância. A norma do Código não se refere à instância, mas sim à primeira vez que foi declarada a nulidade; pode perfeitamente a sentença da primeira instância ter sido negativa, e a primeira declaração da nulidade ter ocorrido só na segunda instância. A falha de tradução foi corrigida em edições posteriores.

[5] Essa proibição pode ter lugar, entre outras hipóteses, porque o processo demonstrou ser, tal parte, incapaz para assumir as obrigações essenciais do matrimônio, ou não aceitar o matrimônio com os seus elementos essenciais (unidade, indissolubilidade, …)

[6] Este texto não foi reconsiderado após a edição da Dignitas connubii. Importa ver os arts. 290/294 dessa Instrução.

[7] https://www.vatican.va/content/pius-xii/en/apost_constitutions/documents/hf_p-xii_apc_19470202_provida-mater-ecclesia.htmlProvida Mater Ecclesia, August 15, 1936, AAS 28 (1936) 313-361.

[8] Art. 136. A fórmula da dúvida, uma vez fixada, não pode ser validamente modificada senão mediante novo decreto, por causa grave, a instância de parte e depois de ouvir e ponderar as razões da outra parte e do defensor do vínculo.

[9] que corresponde ao Cân. 1644, § 1, transcrito acima.

[10] Cân. 1679, 1680, na nova redação.

Via Sacra

Alexandre Henrique Gruszynski

Estamos todos habituados a ver, dentro de nossos templos, uma sequência de catorze cruzes, às mais das vezes acompanhadas de imagens, como pontos de referência de uma caminhada a ser feita, individual ou coletivamente,recordando e revivendo os acontecimentos da última etapa do caminho terreno do Filho de Deus, seguindo os passos de Jesus que, “carregando às costas a cruz, saiu para o lugar chamado Crânio, que em hebraico se diz Gólgota” (Jo 19, 17).[1]

É a chamada Via-Sacra.

Não se trata de elemento indispensável na arquitetura de uma igreja (ou capela), como também o essencial para a sinalização de tal caminho são as 14 cruzes, conquanto quase sempre as imagens que acompanham tais cruzes sejam de dimensões muito maiores do que as próprias cruzes.  Encontram-se, pelo mundo afora, itinerários ao ar livre igualmente marcados pela sequência de cruzes com a mesma finalidade: caminhada meditando o roteiro da 6ª. feira da Semana Santa. 

Ao longo da caminhada, pois, o devoto faz uma parada diante de cada cruz, e por isso se diz que as cruzes marcam as estações (em Latim statio), ou seja: as paradas.  O verbo stare, em Latim, tem o sentido de ficar de pé.

Tal caminhada, habitualmente acompanhada por orações e às vezes cânticos, não é uma celebração litúrgica, mas sim um exercício de piedade.[2]

A devoção da Via Sacra ou Caminho da Cruz (em latim Via Crucis), tem como mote, pois, refazer o dia da 6a. feira conhecida em Português também como Sexta-feira da Paixão.  É oportuno lembrar que para os israelitas o dia começa com o por-do-sol da véspera, de modo que a Ceia de Jesus com os Apóstolos foi celebrada já na 6ª. feira. 

Reza a lenda que Maria, a Mãe de Jesus teria, posteriormente à Ascensão, ou pelo menos à Ressurreição de seu Filho, refeito reiteradamente o caminho do Pretório ao Calvário, assim como teria ido atrás dele no dia de sua crucificação.

É historicamente considerado certo, porém, que peregrinos que visitavam a Palestina procuravam fazer, eles próprios, o circuito dos passos de Jesus, ou ao menos conhecer algumas das igrejas de Jerusalém, construídas em locais comemorativos.

Na Idade Média, tendo em conta não ser fácil aos peregrinos o acesso à Terra Santa e aos locais da Paixão de Jesus, franciscanos e representantes de outras ordens religiosas começaram a construir, pela Europa, capelas e santuários que reproduziam esses locais de Jerusalém. Assim, o frade dominicano Álvaro de Córdoba difundiu a devoção, começando por Córdoba, onde ele construiu pequenos oratórios de estilo similar às estações modernas.

A denominação de “estações” dada às paradas para oração nos lugares marcados pelas cruzes (e, eventualmente, pelas imagens) parece ter surgido no século XV, por ter sido o termo usado por um peregrino inglês que, em visita à Terra Santa, com ele (station) designou tais paradas no caminho de Jesus rumo à Cruz. O termo se teria tornado popular, então, na Inglaterra, e daí se difundido pela Igreja do Ocidente.

 No século XVII, os franciscanos queriam começar a construir essas “estações” dentro das igrejas e pediram, para tanto, permissão a Roma. Além disso, eles queriam que os fiéis recebessem as mesmas indulgências que teriam sido dadas aos que viajassem para Jerusalém. O Papa Inocêncio XI atendeu ao pedido, abrindo caminho para as Estações da Cruz como as conhecemos hoje.

Não se pode dizer, pois, que tenha havido uma determinada pessoa responsável por criar as Estações do Caminho da Cruz. Vários santos ao longo dos séculos, começando com a Santíssima Virgem Maria, seguiram os passos de Jesus Cristo, contemplando sua Paixão e Morte.

Em tempos mais recentes foi espalhada pelo Ocidente uma notícia de que o Papa São João Paulo II teria sugerido que fosse criada uma décima-quinta estação na Via Sacra para recordar a ressurreição de Jesus.

Se é que é verdade que o Santo Papa tenha alguma vez tido tal ideia, e mesmo a manifestado em alguma ocasião, certo é que ele nunca teria tomado qualquer decisão a respeito de tal acréscimo. Nada nesse sentido foi encontrado em suas decisões e determinações, e basta percorrer  os textos (facilmente acessíveis na Internet) das celebrações por ele presididas, no Coliseu de Roma, nas sextas-feiras da Semana Santa dos muitos anos em que esteve à frente da Igreja Universal, para ver que sempre se limitou às catorze estações habituais.

Certo é, entretanto, também, que em alguns setores da Igreja do Ocidente apareceu tal acréscimo. São iniciativas, entretanto, que extrapolam o Caminho da Cruz, pois este terminou com a morte de Jesus; a Ressurreição, a Ascensão e o Envio do Espírito Santo são fatos posteriores. Não há por que aditar a venerável celebração da Via Sacra, conhecida também como Via Dolorosa, com novidades que com ela não se coadunam.

A celebração da Ressurreição, seguida da Ascensão e da Vinda do Espírito Santo pertencem a outra etapa da vida anual da Igreja.

A Quaresma é um tempo de contenção da alegria, a ponto de vedar-se a aclamação Aleluia até a Vigília Pascal, quando, ao menos nas Catedrais, o Diácono anuncia formalmente ao Bispo celebrante da Liturgia o retorno dessa palavra de alegria e aclamação.[3]    

O acréscimo do episódio da Ressurreição do Senhor à Via Dolorosa como celebrada há séculos na Igreja do Ocidente, constitui mais uma das tantas inovações que, surgindo em certos ambientes da Igreja, prejudicam o sentido da própria celebração, além de, no caso do canto do Aleluia no Tempo da Quaresma, mostrarem lamentável violação da perspectiva de “tempos sagrados” que marca o ciclo litúrgico anual.      


[1] Cf. João Paulo II, Via-Sacra da 6ª. feira da Semana Santa, ano 2000.

[2] Cf. II Concílio do Vaticano, Constituição sobre a Liturgia – Sacrosanctum Concilium, n° 13: São muito de recomendar os exercícios de piedade do povo cristão, desde que estejam em conformidade com as leis e as normas da Igreja, e especialmente quando se fazem por mandato da Sé Apostólica. … Importa, porém, ordenar essas práticas tendo em conta os tempos litúrgicos, de modo que se harmonizem com a sagrada Liturgia, de certo modo derivem dela, e a ela, que por sua natureza é muito superior, conduzam o povo.

[3] Cerimonial dos Bispos, n° 352.