Nota preliminar: Este texto é o Roteiro para a aula correspondente no Curso de Aperfeiçoamento (pós-graduação lato sensu) em Processo Canônico de Nulidade de Matrimônio, realizado pela Faculdade de Direito da PUCRS em 2001-2003.
COISA JULGADA – NOÇÃO, JUSTIFICAÇÃO
A expressão res iudicata, em francês chose jugée, em italiano cosa giudicata, é traduzida na linguagem jurídica brasileira por coisa julgada, mas na lusitana por caso julgado.
Chama-se de coisa julgada a ocorrência de algo decidido por sentença judiciária irrevogável. Não absolutamente irrevogável, mas ordinariamente irrevogável, isto é, revogável só por vias extraordinárias. Em outras palavras, o julgamento que não pode ser atacado pela via ordinária da apelação, ou: a sentença definitiva que não é suscetível de apelação.
Justifica-se porque o bem público exige que os processos terminem, exige que os direitos não possam ser perpetuamente questionados perante os tribunais; é necessária uma estabilidade não só na legislação, mas também nas relações concretas entre as pessoas.
O instituto da coisa julgada chegou ao direito canônico por via do direito de Justiniano: Res iudicata pro veritate habetur et finem imponit controversiae.
Há, entretanto, decisões que, embora definitivas e não suscetíveis de apelação, não passam em julgado (é esta a expressão verbal para dizer que chegam a coisa julgada), por expressa exceção legal: são as causas referentes ao estado das pessoas, cf. o Cân. 1643.
Poderíamos até deixar de lado essa matéria, portanto, porque o nosso Curso é sobre processos que não levam a coisa julgada. Mas é importante ter uma visão ao menos global do assunto, ao qual está ligada indissoluvelmente a restitutio in integrum e a correspondente nova causae propositio, esta sim cabível nas causas referentes à nulidade de matrimônio.
QUANDO HÁ COISA JULGADA?
Vamos à regra legal básica, que se encontra no Cân. 1641:
Cân. 1641 – Salva a prescrição do Cân.1643, há coisa julgada:
1o. – se tiverem sido dadas duas sentenças concordes entre as mesmas partes, sobre o mesmo pedido e pela mesma causa de demanda;
2o. – se a apelação contra a sentença não tiver sido apresentada dentro do tempo útil;
3o. – se, em grau de apelação, a instância se tiver tornado perempta ou tiver havido renúncia a ela;
4o. – se tiver sido proferida sentença definitiva, contra a qual, de acordo com o Cân. 1629, não se admite apelação.
São, portanto, quatro hipóteses.
Na primeira, observe-se, devem concorrer quatro requisitos: 1. tenha sido dada uma dupla sentença conforme, 2. numa causa entre as mesmas partes, 3. sobre o mesmo pedido e 4. e pelo mesmo fundamento (causa petendi).
A segunda hipótese pode resultar de duas situações diferentes: 1. não foi proposta apelação no prazo legal, que é de quinze dias da publicação da sentença (Cân. 1630, § 1), ou 2. a apelação foi proposta, mas depois deixada deserta, ou seja, não foi «prosseguida» no tribunal de apelação (Cân. 1633-1635).
A terceira hipótese ocorre quando, no grau de apelação, ocorreu 1. a perempção da instância (Cân. 1520-1521) ou 2. a renúncia à instância (Cân. 1524 e 1636).
A quarta hipótese refere-se às sentenças definitivas[1] não suscetíveis de apelação, como sejam as proferidas pelo Papa pessoalmente ou pelo Tribunal da Assinatura Apostólica, aquelas que já passaram em julgado, aquelas dadas em questões que a lei determina deverem ser julgadas expeditissime, etc., conforme Cân. 1629.
EFEITOS DA COISA JULGADA
Leiamos primeiro o texto legal, que é o Cân. 1642:
Cân. 1642 – § 1. A coisa julgada tem estabilidade de direito e não pode ser impugnada diretamente, a não ser de acordo com o Cân. 1645, § 1.
§ 2. Ela faz direito entre as partes e proporciona ação de julgado e exceção de coisa julgada, que o juiz pode declarar também ex officio, para impedir nova introdução da mesma causa.
Logo se vê que os efeitos que resultam da ocorrência da coisa julgada são de duas ordens: formal e material.
O efeito formal consiste na presunção legal de veracidade e da justiça do que foi estabelecido na decisão judicial. É uma presunção iuris et de iure, embora possa ser atacada indiretamente,[2] e possa excepcionalmente ser pleiteada a restitutio in integrum, quando a injustiça da coisa julgada é clara e evidentemente provada. Mas o que foi decidido e transitou em julgado goza da firmitas iuris.
O efeito substancial consiste na eficácia jurídica que a sentença tem, entre as partes, eficácia essa que por sua vez produz 1. um efeito constitutivo, que é a ação do favorecido pela sentença para pô-la em prática (a execução da sentença, como se diz no processo brasileiro) e 2. um efeito preclusivo, que é a exceção de coisa julgada, com a qual se impede a reintrodução da mesma causa (Cân. 1462, § 1 e 2), exceção essa que pode ser apresentada até pelo próprio Juiz. Relembre-se que tal exceção só tem cabimento quando a nova causa tenha as mesmas partes, o mesmo objeto e a mesma razão de pedir.
A RESTITUTIO IN INTEGRUM
NOÇÃO, JUSTIFICAÇÃO
A restitutio in integrum é uma medida jurídica destinada a reparar lesões graves que resultem de atos válidos mas rescindíveis; pretende restabelecer os interessados na situação jurídica em que se encontravam antes do ato que trouxe prejuízo a seus direitos. É uma reintegração nos direitos anteriormente titulados.
Aqui, no processo, trata-se da aplicação, à coisa julgada, desse instituto jurídico, que tem como efeito repor as partes na situação em que se encontravam antes da coisa julgada.
É uma via de recurso excepcional, só admissível quando, não havendo possibilidade de apelação nem de querela de nulidade, há um evidente conflito entre certeza e justiça formais e a justiça real, devendo esta última prevalecer sobre aquela.
Corresponde, em linhas gerais, à ação rescisória do processo civil brasileiro.
APLICABILIDADE
Como a restitutio in integrum é dirigida unicamente contra coisa julgada, não cabe diante de decisões que jamais passam a coisa julgada, como o são as referentes ao estado das pessoas, e, portanto, as de nulidade matrimonial.
A lei é bastante explícita sobre a matéria. Veja-se o Cân. 1645:
Cân. 1645 – § 1. Contra sentença que tenha passado em julgado, contanto que conste manifestamente de sua injustiça, dá-se a restitutio in integrum.
§ 2. Não se considera que conste manifestamente da injustiça a não ser que:
1o. a sentença se baseie de tal modo em provas que depois se descubra serem falsas, que, sem elas, a parte dispositiva de tal sentença não se possa sustentar;
2o. tenham sido descobertos posteriormente documentos que provem fatos novos e exijam indubitavelmente uma decisão contrária;
3o. a sentença tenha sido proferida por dolo de uma parte em prejuízo da outra;
4o. tenha sido evidentemente negligenciada alguma prescrição, não meramente processual, da lei;
5o. a sentença se oponha a uma decisão anterior que tenha passado em julgado.
Esquematizando um pouco o texto legal, vemos que há dois requisitos básicos para pleitear-se a restitutio in integrum: 1. que a decisão impugnada tenha transitado em julgado e 2. que ou se prove desde logo que a mesma decisão foi manifestamente injusta ou que de tal injustiça se forneça um fundamento a ser comprovado, a seguir, no processo.
Essa «manifesta injustiça» o legislador definiu como ocorrente em cinco casos, que são os nos. do § 2 do Cân. 1645. Como a restitutio in integrum é um recurso extraordinário, o balizamento é bastante estrito, e, nesses diversos números, há adjetivos, mas principalmente advérbios, que não podem ser desconsiderados.
A QUEM E ATÉ QUANDO SE PLEITEIA
A quem, e até quando, se pode pleitear a restitutio in integrum, depende da causa de pedir.
Porque, de acordo com o Cân. 1646, § 1,
– se o motivo é um dos três primeiros enunciados no Cân. 1645, § 2, (que configuram uma situação de direito) deve ser impetrada 1. perante o Juiz da causa que prolatou a sentença e 2. dentro de três meses do dia em que a parte tomou conhecimento de tal motivo;
– se o motivo é o 4º ou 5º dos enunciados no mesmo Cân. 1645, § 2, (que configuram uma situação de fato) deve ser impetrada 1. perante o tribunal de apelação 2. dentro de três meses de ter tido conhecimento da publicação da sentença, a não ser que, no caso do nº 5º, o conhecimento da decisão precedente se tenha dado depois, caso em que os três meses se contam da ciência dessa decisão precedente.
Mas esses prazos não correm enquanto o lesado for menor de idade, diz o § 3 do mesmo Cân. 1646.
EFEITOS DA RESTITUTIO IN INTEGRUM
A simples impetração da restitutio in integrum já tem ou pode ter efeito.
Porque se a execução da sentença que se procura impugnar ainda não foi iniciada, ela em regra nem se inicia. Mas o Juiz que, por indícios prováveis, suspeite de que a impetração da restitutio in integrum se tenha dado com o objetivo de retardar a execução, pode determinar que a tal sentença se execute, mas apenas depois de ter proporcionado, a quem impetrou a restitutio in integrum, uma adequada garantia (caução) de indenização caso venha a ser concedida a restitutio in integrum.
Concedida a restitutio in integrum, tudo deve voltar ao status anterior: não há mais coisa julgada, devem ser restituídos os bens ou outros objetos recebidos em virtude do julgamento, deve-se permitir o exercício do direito negado pelo julgamento, etc., até que um novo julgamento decida sobre a matéria.
Esse novo julgamento, sobre o mérito da causa, quem deve realizá-lo é o Juiz que concedeu a restitutio in integrum.
É o que se vê dos Cân. 1647 e 1648.
A «FIRMEZA DA DECISÃO», NAS CAUSAS REFERENTES AO ESTADO DAS PESSOAS
A estabilidade das situações jurídicas decorrente da certeza em que se encontram as partes (e a comunidade) após a ocorrência da coisa julgada não surgiria jamais em relação precisamente ao estado das pessoas, uma vez que, segundo a legislação canônica vigente, como se viu, decisões nessa matéria jamais passam em julgado.
Não passarem em julgado tais decisões é uma exceção, fundada na salus animarum e no perigo de pecado. A observância de uma sentença injusta, em tal matéria, seria ocasião (se não causa) de pecado; seria contrária ao objetivo último da Igreja, que é a salvação das almas.
Mas, por outra parte, os juristas tiveram de encontrar um modo de permitir que tais decisões judiciais, embora não dotadas da qualidade de coisa julgada, fossem postas em prática.
Essa é a perspectiva das normas legais que estabelecem o que se chama de «firmeza de direito», que é uma quase-coisa-julgada, e que ocorre, nas causas de nulidade matrimonial, quando uma sentença favorável à nulidade é confirmada por outra sentença (ou por decreto, quando assim previsto) no mesmo sentido.[3]
Porque, como determina o Cân. 1684, § 1,
Depois que a sentença que por primeiro[4] declarou a nulidade do matrimônio foi confirmada em grau de apelação ou por decreto ou por segunda sentença, aqueles cujo matrimônio foi declarado nulo podem contrair novas núpcias logo que lhes tiver sido notificado o decreto ou a segunda sentença, a não ser que isso lhes seja ou vedado por proibição aposta à própria sentença ou decreto, ou estabelecido pelo Ordinário local.[5]
Na prática, pois, sob o aspecto de exeqüibilidade, estamos na mesma situação da coisa julgada.
Mas e se a sentença foi injusta, incorreta? A observância de uma sentença injusta, em tal matéria, repito, seria ocasião, ou até causa, de pecado; seria contrária ao objetivo último da Igreja, que é a salvação das almas.
Entretanto, como não cabe restitutio in integrum, porque não há coisa julgada, também foi necessário encontrar uma outra saída, e esta é a nova causæ propositio.
A NOVA CAUSÆ PROPOSITIO[6]
NOÇÃO, JUSTIFICAÇÃO
Embora a expressão nova causæ propositio não seja tão antiga, já no impropriamente chamado «Decreto» de Graciano (séc. XII) o problema está colocado na causa XXXV, quaestio IX: …quaeritur, si Ecclesia fraude testium, aut ignorantia eorum decepta aliquos separaverit, qui post separationem alia coniugia contraxerint, si postea deprehensa fuerit calliditas vel falsa opinio testium, an propria conjugia sint redintegranda. E responde Graciano: Aliud est sententiam rescindere et rationabiliter decisa turbare, atque aliud quae per surreptionem eveniunt deprehensa corrigere.
E por aí foi se firmando, esclarecendo, complementando mesmo, a possibilidade de propor-se a revisão da sentença injusta, ou infundada, em matéria de nulidade matrimonial. A Dei miseratione, de Bento XIV (3.11.1741) trata do assunto; a seguir duas Instruções de Congregações Romanas de 1883, e se chega ao Código de 1917, onde ela aparece em dois Cânones, que dizem o seguinte:
Cân. 1903. Nunca passam em julgado as causas sobre estado das pessoas; mas duas sentenças conformes nestas causas fazem que não deva admitir-se uma nova proposição a não ser que se aduzam novas e graves razões ou documentos.
Cân. 1989. Como as sentenças em causas matrimoniais nunca transitam em julgado, as mesmas causas poderão, a qualquer tempo, ser tratadas de novo, se se apresentam novas provas, mantido o que prescreve o Cân. 1903.
A Instrução Provida Mater,[7] de 1936, regulamentou o Cân. 1989 (art. 217) e a codificação provisória do Direito das Igrejas Orientais na parte relativa aos processos (1950), incorporou explicitamente o princípio audiatur et altera pars. Antes de chegarmos ao Código de 1983 vigente para a Igreja Latina ainda tivemos o Motu proprio Causas Matrimoniales (de 1971), que no art. IX tratou da matéria.
GULLO, Carlo, em artigo publicado na Coletânea Il processo matrimoniale canonico, LEV, 1988, expõe muito bem o porquê do instituto:
La «ratio» dell’istituto come strutturato giuridicamente oggi, è ancora la stessa di quella che lo contraddistinse alle sue origini; se è vero infatti che, dopo una doppia sentenza conforme, la decisione si presume giusta e vera e di conseguenza non deve facilmente concedersi il nuovo esame, ché altrimenti le cause possono diventare immortali con grave danno sociale per l’incertezza dello status personale dei contraenti e dei diritti e degli obblighi che in questo trovino la loro radice, è altrettanto vero che il bene delle anime e la «ratio peccati» nelle cause matrimoniali proibisce che sia mandata ad esecuzione una sentenza che, se pur si presume giusta, tale non sia. (pág. 369)
A LEGISLAÇÃO VIGENTE
Para não nos demorarmos demais no assunto, vejamos, um tanto dogmaticamente alguns pontos cujo aprofundamento por via de discussão seria muito interessante, mas que aqui nos levaria a não tratarmos de nenhum outro assunto mais.
Quais as normas vigentes? Onde estão? É uma impugnação?
No Código de 1983 a matéria está disciplinada no Cân. 1644:
Cân. 1644 – § 1. Se tiverem sido pronunciadas duas sentenças concordes em causa referente ao estado das pessoas, em qualquer tempo se pode recorrer ao tribunal de apelação, apresentando novas e graves provas ou argumentos dentro do prazo peremptório de trinta dias desde a proposição da impugnação. O tribunal de apelação, porém, dentro do prazo de um mês desde a apresentação das novas provas e argumentos, deve decidir, por decreto, se a nova propositura da causa deve ou não ser admitida.
§ 2. O recurso ao tribunal superior, para a obtenção de uma nova propositura da causa, não suspende a execução da sentença, a não ser que a lei determine o contrário ou o tribunal de apelação ordene a suspensão, de acordo com o Cân. 1650, § 3.
Em primeiro lugar uma observação: a nova causae propositio não vem tratada em um título independente; encontra-se no Título IX, epigrafado «Da coisa julgada e da restitutio in integrum» e, dentro desse Título IX, no Capítulo I, intitulado «Da coisa julgada». Não se encontra no Título VIII, que leva como cabeçalho «Da impugnação da sentença», e que compreende só dois Capítulos: Querela de nulidade e Apelação. A nova causae propositio não é, pois, uma impugnação, poder-se-ia rapidamente concluir. Só que é, não só pela sua própria natureza, mas até porque o mesmo Código diz, de passagem, que é. Veja-se no fim da primeira sentença do § 1 do Cân. 1644, que usa exatamente a palavra impugnação.
Difere dos outros meios.
1. Da apelação porque pode propor-se a qualquer tempo, não suspende (necessariamente) a executividade da decisão «firme», propõe-se contra uma decisão «dupla conforme» e exigem-se novos e graves argumentos, enquanto a apelação deve ser proposta em quinze dias, suspende a executividade da decisão e não necessita de argumentos graves e novos.
2. Da querela de nulidade porque presume a validade da sentença, e a querela de nulidade, presume exatamente a nulidade da sentença.
3. Da restitutio in integrum porque esta só se aplica a causas passadas em julgado, e a nova causae propositio às que nunca passam; esta não está sujeita a limite de tempo para proposição, aquela sim, a prazos peremptórios.
Quem pode propor?
O Cân. 1644 não explicita, e por isso há de se buscar a resposta nos princípios gerais referentes ao processo canônico, a partir dos quais se chegará à legitimação dos cônjuges, do Promotor de Justiça e, naturalmente, do Defensor do Vínculo, que se equipara, no processo, às partes.
Ambos os cônjuges? Sem dúvida o cônjuge que «perdeu» a causa, o sucumbente como se costuma dizer. Mas diante da legislação vigente também o «ganhador» do processo. Tanto o que pediu e obteve, ou não, a sentença de nulidade, como o demandado, desde, naturalmente que tenham capacidade para «estar em juízo»; se não, terão de fazê-lo mediante curador.
Defensor do Vínculo e Promotor de Justiça, mas qual? O Defensor que atualmente esteja atuando no Tribunal cuja decisão vai ser impugnada, mas também o que esteja atuando no Tribunal perante o qual se vai dar a impugnação. Não se trata de algo pessoal, referente ao Defensor que atuou na causa, nem tampouco de algo que diga respeito ao local onde poderia ter corrido o processo em qualquer das instâncias. O mesmo se diga do Promotor de Justiça. Mas é claro que o Defensor do Vínculo só pode impugnar uma decisão que tenha sido pela nulidade, o que não ocorre com o Promotor, que deve promover a justiça.
Nada impede que outras pessoas denunciem ao Promotor de Justiça ou ao Defensor do Vínculo motivos que poderiam levar à impugnação.
GULLO (op. cit., pág. 375/376) defende, ademais, que poderia haver intervenção de terceiro na nova causae propositio, sempre que se comprovasse um interesse legítimo, e que esse terceiro até devesse ser desde logo citado, se conhecido de antemão seu interesse. Refere-se especialmente à hipótese de A, tendo tido declarado nulo com dupla conforme seu matrimônio com B, haver casado com C. Se A ou o Defensor do Vínculo (ou o Promotor de Justiça) ingressam e vêem admitida a nova causae propositio, visando a derrubar a decisão pela nulidade do matrimônio entre A e B, é evidente o interesse de C.
Qual é o Tribunal competente?
É o Tribunal de Apelação, diz a lei. Como haverá já duas decisões, normalmente se tratará da Rota Romana. Mas excepcionalmente pode ser outro Tribunal (Rota da Espanha, Tribunal ao qual por especial concessão se tenha dado competência como de 3º grau, …).
Requisitos para que possa ser obtida
1. que tenha havido uma dupla sentença conforme, em causa referente a estado das pessoas, notando-se que o decreto de homologação da primeira sentença pela nulidade, equipara-se a uma sentença, para tal efeito (Cân. 1684, § 2). É importante ter em conta o que a doutrina e a jurisprudência já vinham proclamando e que ficou expresso na Instrução Dignitas connubii : Consideram-se equivalentemente ou substancialmente concordes as decisões que, conquanto designem e determinem o capítulo de nulidade com denominação diversa, fundamentem-se, todavia, sobre os mesmos fatos nulificantes e sobre as mesmas provas. Ressalvado o que dispõe[8] o art. 136 e respeitado o direito de defesa, conhece da conformidade equivalente ou substancial entre duas decisões o tribunal de apelação que exarou a segunda ou o tribunal superior (art. 291, §§ 2 e 3). Assim, embora haja discrepância entre a «fórmula de dúvidas» entre uma e outra instância, poderão as decisões ser consideradas conformes entre elas se fundadas nos mesmos fatos e correspondentes provas.
2. que se disponha de novas e graves provas ou argumentos, a serem apresentados dentro de trinta dias do pedido (por exemplo: a parte se retrata da confissão; uma testemunha produz um documento dizendo que mentiu sobre um ponto essencial; aparece uma testemunha que não havia sido localizada e que dispõe de elementos importantes; descobre-se um documento; o Colegiado cometeu um evidente erro de direito; houve um grave vício de procedimento, etc.); há autores e jurisprudência tanto no sentido de que o prazo de trinta dias é peremptório como no sentido de que não é, desde que o Juiz admita ainda depois, evitando assim que a parte tenha de entrar com novo pedido. Também aqui a Dignitas connubii traz significativo esclarecimento: Não é necessário que as novas razões ou provas a que se refere o art. 290, § 1[9] sejam gravíssimas e muito menos que sejam resolutivas, isto é, que exijam peremptoriamente uma decisão contrária, mas basta que a tornem provável. Não bastam, porém, meras censuras e observações críticas a respeito das decisões proferidas (art. 292, §§ 1 e 2).
Efeitos da apresentação do pedido
A simples apresentação do pedido de admissão a novo exame em regra não suspende a execução da sentença (ao contrario da restitutio in integrum), a não ser que a lei determine o contrário (na legislação universal não há qualquer dispositivo) ou o tribunal assim desde logo o decida, se vir que o pedido provavelmente é fundado e que da execução poderá resultar grave dano (cf. Cân. 1644, § 2, combinado com o Cân. 1650, § 3; Dignitas connubii, art. 294).
Ademais, dentro do prazo de um mês da apresentação das provas ou argumentos o Tribunal deve decidir se admite ou não o reexame da causa.
A tramitação
A maior parte da doutrina inclinava-se a afirmar que o Juiz pode decidir sobre o pedido independentemente de ouvir alguém. Mas há quem, como GULLO (op. cit., pág. 380/382) que terminantemente procurou convencer que a audiência da outra parte, ou das outras partes, é indispensável, antes da decisão.
A posição de GULLO prevaleceu ao ser editada a Dignitas connubii, que no art. 293, § 1, determina seja ouvido o Defensor do Vínculo e intimada a outra parte; esta, intimada, evidentemente poderá manifestar seu ponto de vista.
Apresentados, pois, os argumentos ou provas (e ouvidas as outras partes, às quais deve ser dada oportunidade de relevarem, querendo, os argumentos), o Tribunal deve decidir se as novas provas apresentadas (ou os argumentos) são suficientemente graves para tornar provável a revisão da «dupla decisão conforme», ou não.
Se o novo exame é concedido, o Tribunal pode (se isso já não foi feito antes) decidir se determina a suspensão da execução da sentença. Parece que deva fazê-lo sempre que alguma das duas partes liberadas para casar ainda não o tenha feito, e isso por razões óbvias.
Recursos
Da decisão da Rota Romana que negar novo exame cabe apelação ao Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica (Cân. 1445, § 1, nº 2).
Se a decisão, excepcionalmente, tiver sido de um Tribunal que por especial concessão atue em 3ª instância (que não a Rota da Espanha), o recurso é para a Rota Romana.
Já da decisão que admite novo exame da causa não cabe apelação, porque essa admissão não implica em nenhuma consideração de mérito, segundo a jurisprudência da Rota. Está certo?
Por fim, há de lembrar-se que nada impede um segundo pedido de nova causae propositio, contanto que outros sejam os argumentos ou provas, novos e graves, que se apresentem, diversos daqueles indicados na primeira tentativa.-
NOTA COMPLEMENTAR:
A superveniência das Normas editadas mediante o Motu Proprio «Mitis Iudex Dominus Iesus» alterou em vários pontos a disciplina jurídica referida no texto supra., especialmente quando se trate de causas relativas à nulidade de matrimônio.
Assim, não mais é exigida a ocorrência de uma segunda sentença, conforme à primeira, pela nulidade de um matrimônio, para que essa se torne executiva, sem prejuízo do direito à apelação da parte que se considere agravada, ou do Defensor do Vínculo, ou do Promotor de Justiça.[10]
E o Cân. 1681, na nova redação, prevê que Se foi emitida uma sentença executiva pode-se recorrer, em qualquer momento, ao Tribunal de terceiro grau para uma nova proposição da causa nos termos do Cân. 1644, aduzindo-se, dentro do prazo peremptório de trinta dias a partir da apresentação da impugnação, novas e ponderosas provas ou argumentos, dentro do prazo peremptório de trinta dias a partir da apresentação da impugnação.
[1] como já apontado anteriormente, «definitiva» se opõe a «interlocutória»; não significa, em si, imutável.
[2] provando que não ocorreram os alegadamente dois julgamentos concordes, ou que um deles (ou o único, quando tivesse bastado) ou ambos, são nulos, …
[3] Por exceção, a «firmeza da decisão» nos processos meramente documentais (Cân. 1686/1688), decorre já da primeira decisão não apelada.
[4] A tradução brasileira da Ed. Loyola não corresponde ao que estabelece o texto original, uma vez que fala em primeira instância. A norma do Código não se refere à instância, mas sim à primeira vez que foi declarada a nulidade; pode perfeitamente a sentença da primeira instância ter sido negativa, e a primeira declaração da nulidade ter ocorrido só na segunda instância. A falha de tradução foi corrigida em edições posteriores.
[5] Essa proibição pode ter lugar, entre outras hipóteses, porque o processo demonstrou ser, tal parte, incapaz para assumir as obrigações essenciais do matrimônio, ou não aceitar o matrimônio com os seus elementos essenciais (unidade, indissolubilidade, …)
[6] Este texto não foi reconsiderado após a edição da Dignitas connubii. Importa ver os arts. 290/294 dessa Instrução.
[7] https://www.vatican.va/content/pius-xii/en/apost_constitutions/documents/hf_p-xii_apc_19470202_provida-mater-ecclesia.html – Provida Mater Ecclesia, August 15, 1936, AAS 28 (1936) 313-361.
[8] Art. 136. A fórmula da dúvida, uma vez fixada, não pode ser validamente modificada senão mediante novo decreto, por causa grave, a instância de parte e depois de ouvir e ponderar as razões da outra parte e do defensor do vínculo.
[9] que corresponde ao Cân. 1644, § 1, transcrito acima.
[10] Cân. 1679, 1680, na nova redação.